#Dobras 28 // As novas roupas do capitalismo | Parte 1

22 de abril de 2019

Paulo Faltay traz a primeira parte da tradução da longa e contundente resenha de Evgeny Morozov ao novo livro de Shoshana Zuboff, The Age of Surveillance Capitalism. Fundamentado em um pensamento crítico de esquerda – com pitadas marxistas – o texto passeia, ora dialogando, ora enfrentando, pelas perspectivas dos autonomistas italianos e, num embate frontal, pelo liberalismo progressista de Zuboff. A resenha, às vezes excessivamente ácida, às vezes prolixa, percorre tanto a produção intelectual da autora, como apresenta um panorama da imaginação e das formulações teóricas sobre a formação e desenvolvimento do regime tecnopolítico contemporâneo.

Para acessar a segunda parte, clique aqui.

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As novas roupas do capitalismo

 

O novo livro de Shoshana Zuboff sobre “capitalismo de vigilância” enfatiza a segunda às custas do primeiro

 

Por Evgeny Morozov. Tradução de Paulo Faltay. Originalmente publicado na The Baffler, aqui

 

I.

 

Em uma série de artigos notavelmente premonitórios, o primeiro dos quais publicado no jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung no verão de 2013, Shoshana Zuboff apontou um fenômeno alarmante: a digitalização de tudo deu às empresas de tecnologia um imenso poder social. Das iniciais, e modestas, armadilhas colocadas em nossos navegadores, eles conquistaram, no estilo Blitzkrieg, nossas casas, carros, torradeiras e até colchões. Escovas de dentes, tênis, aspiradores de pó: nossos antigos e idiotas companheiros domésticos tornaram-se nossos chefes “inteligentes”. Esses modelos de negócios converteram os dados digitais em ouro e favoreceram, assim, sua expansão.

 

O Google e o Facebook estavam reestruturando o mundo, não apenas resolvendo os problemas deles. O público em geral, seduzido por jovens encapuzados que eram embaixadores do mundo da tecnologia e lobotomizados pelas palestras do TED Talk, não tinha ideia de tudo isso. Zuboff observou uma lógica nessa bagunça digital; empresas de tecnologia seguiam racionais – e aterrorizantes – imperativos. Atacá-los por violações de privacidade significava perder a perspectiva da escala da transformação – um erro de cálculo trágico que afetou muito do ativismo contra os gigantes de tecnologia (Big Techs) que observamos hoje.

 

Esse erro analítico também levou muitas pessoas inteligentes e bem intencionadas a insistirem que o Vale do Silício deveria – e poderia – se arrepender. Insistir, como fazem esses críticos, que o Google deveria começar a proteger nossa privacidade é, para Zuboff, “como pedir a Henry Ford para fabricar manualmente cada carro ou pedir a uma girafa para encurtar seu pescoço”. Os imperativos do capitalismo de vigilância são quase sempre evolutivos: nenhuma política inteligente, mesmo no Congresso (americano), conseguiu encurtar o pescoço da girafa.

 

O cirúrgico termo que Zuboff usou para descrever este regime, o “capitalismo de vigilância” tornou-se popular. Que este termo tenha sido usado anteriormente – e de uma maneira muito mais crítica – por marxistas na Monthly Review é um pequeno inconveniente genealógico para Zuboff. Seu novo e muito aguardado livro The Age of Surveillance Capitalismo documenta exaustivamente suas sinistras operações. Do Pokemon Go às cidades inteligentes, da Amazon Echo às bonecas inteligentes, os imperativos do capitalismo de vigilância, assim como seus métodos – caracterizados pelas constantes mentiras, ocultamentos e manipulações – se tornaram onipresentes. Os velhos tempos de encher a cara solitariamente se foram: até mesmo as garrafas de vodka tornaram-se inteligente e possuem conectividade à internet. Já quanto aos termômetros retais inteligentes também mencionados no livro, você provavelmente não vai querer saber. Apenas torça para que a sua carteira digital tenha bitcoins suficientes para satisfazer os hackers.

 

nenhuma política inteligente, mesmo no Congresso (americano), conseguiu encurtar o pescoço da girafa

 

O livro de Zuboff deixa claro que as promessas feitas pelos “capitalistas de vigilância” são tão doces quanto seu lobby é implacável. As empresas tecnológicas, sob a fachada pomposa de reconfigurar tudo para o benefício de todos, desenvolveram uma série de truques retóricos e políticos que os isolam de qualquer pressão vinda de baixo. Também ajuda, é claro, que a única pressão vinda de baixo seja aquela que dos botões e telas dos seus dispositivos de extração de dados.

 

Se Donald Trump não tivesse sido eleito presidente – supostamente por causa do acidental bruxo de dados que é Steve Bannon, por seus colegas da Cambridge Analytica e por um grupo de russos que conseguiram usar o Facebook da forma como sempre foi planejado para ser usado – o poder do Vale do Silício poderia ter permanecido como uma questão de nicho: bom para a tagarelice e brincadeiras nerds no Twitter do circuito renegado de think tanks, mas inútil para qualquer outro assunto.

 

Zuboff entrou nessa conversa que estava ocorrendo em todo o mundo há cinco anos, quando os primeiros sinais de descontentamento com o poder das Big Techs estavam fervilhando. O Vale do Silício não era estranho a críticas, mas o de Zuboff não era uma crítica asual. Uma das primeiras mulheres a ter um cargo de professora na Harvard Business School, ela também trabalhou como colunista da Fast Company e da Businessweek, dois bastiões do tecno-otimismo que não são exatamente conhecidos por terem sentimentos anticapitalistas. Se os membros do establishment começaram a atacar o Vale do Silício, aparentemente, algo estava realmente podre no reino digital. O que era?

 

II.

 

Enquanto o uso de Zuboff da frase “capitalismo de vigilância” apareceu pela primeira vez em 2014, as origens de sua crítica são anteriores. Elas podem ser encontradas no final dos anos 1970, quando ela começou a estudar o impacto da tecnologia da informação nos locais de trabalho – um projeto de quarenta anos que, além de resultar em vários livros e artigos, a inundou com esperanças utópicas e decepções amargas. O descompasso entre o possível e o real moldou o contexto intelectual no qual Zuboff – antes uma otimista cautelosa em relação ao capitalismo e à tecnologia – construiu sua teoria do capitalismo de vigilância, a ferramenta mais obscura e distópica dentro de seu arsenal intelectual até hoje.

 

As conclusões deprimentes de seu último livro estão longe do que Zuboff estava dizendo há uma década atrás. Ainda em 2009, ela argumentou que empresas como Amazon, eBay e Apple estavam “liberando grandes quantias de valor ao oferecer às pessoas o que elas queriam em seus próprios termos e em seu próprio espaço”. Zuboff chegou a esse diagnóstico ensolarado através de uma análise abrangente de como a tecnologia da informação estava mudando a sociedade; a esse respeito, ela fazia parte de um grupo de pensadores caracterizado por argumentar que uma nova era – alguns a chamavam de “pós-industrial”, outros “pós-fordistas” – já estava presente entre nós.

 

É dentro dessa análise – e das expectativas otimistas iniciais que ela gerou – que a atual crítica de Zuboff ao capitalismo de vigilância surgiu. Esta é também a razão pela qual seu último tomo muitas vezes se aventura, tanto em conteúdo quanto em linguagem, no campo melodramático: Zuboff, junto com todo o establishment empresarial americano, inebriado pelas promessas da Nova Economia, esperava que algo muito diferente fosse acontecer.

 

Seu primeiro livro, In the Age of the Smart Machine, foi muito aclamado em 1988. Nele, Zuboff formulou um aparato conceitual e um conjunto de questões que reapareceriam em todos os seus escritos posteriores. Com base em anos de trabalho etnográfico em ambientes industriais e de escritório, o livro pintou um futuro ambíguo. De acordo com o argumento de Zuboff, a tecnologia da informação poderia exacerbar as piores características da automação, privar os trabalhadores de sua autonomia e condená-los a tarefas indignas. Mas, quando usada ​​com sabedoria, poderia ter o efeito oposto: aumentar as capacidades dos trabalhadores para o pensamento abstrato e imaginativo e reverter esse processo de desqualificação criticado por marxistas em suas análises sobre o trabalho sob o capitalismo.

 

Estruturada em torno da tecnologia da informação, as empresas modernas, no julgamento do Zuboff, tiveram que escolher entre “automatizar” ou “informatizar”. Este último foi o termo dela para descrever a capacidade inovadora de coletar dados – o “texto eletrônico” – relacionados ao trabalho mediado por computadores. Sob a era anterior da gestão científica de Frederick W. Taylor, esses dados foram coletados manualmente, por meio da observação ou de estudos de tempo e movimento. Ao extrair o conhecimento tácito dos trabalhadores sobre o processo de trabalho, os administradores, auxiliados por engenheiros, poderiam racionalizá-lo, reduzindo drasticamente os custos e elevando os padrões de vida.

 

Graças aos avanços na tecnologia da informação, a criação do texto eletrônico tornou-se barata e onipresente. Se este texto fosse disponibilizado aos trabalhadores, poderia até mesmo minar a base do controle gerencial: a suposição de que o gerente sabe mais e melhor. O texto eletrônico gerou o que Zuboff, seguindo Michel Foucault, descreveu como “poder panótico”. Conjugada com as práticas autoritárias do antigo local de trabalho altamente centralizado, esse poder reforçaria, provavelmente, as hierarquias existentes; os gerentes se esconderiam atrás dos números e governariam remotamente, em vez de arriscar a ambiguidade da comunicação pessoal. Ampliado por um ambiente de trabalho democrático e por regras igualitárias de acesso ao texto eletrônico, este poder poderia permitir aos trabalhadores questionar as interpretações dos gerentes sobre suas próprias atividades e conquistassem algum poder institucional para si próprios.

 

In the Age of the Smart Machine, um livro sobre o futuro do trabalho e também, inevitavelmente, sobre o seu passado, manteve um enorme silêncio sobre o capitalismo. Deixando de lado sua extensa bibliografia, este volume ambicioso de quase quinhentas páginas menciona a palavra “capitalismo” apenas uma vez – em uma citação de Max Weber. Isso foi estranho, já que Zuboff não era uma defensora das empresas que estudava. Ela não tinha ilusões sobre a natureza autoritária do local de trabalho moderno, raramente apresentado como um local para a auto-realização dos trabalhadores, e ela se deleitava em atacar fortemente gerentes obcecados por si mesmos e sedentos pelo poder.

 

As conclusões deprimentes de seu último livro estão longe do que Zuboff estava dizendo há uma década atrás

 

Apesar de tais comentários críticos ocasionais, Zuboff treinou sua lente analítica para analisar os conflitos institucionais que ocorreram em torno do conhecimento e o papel deles na perpetuação ou enfraquecimento das hierarquias organizacionais. A propriedade privada, classe, os meios de produção – a fonte dos primeiros conflitos relacionados ao trabalho – foram excluídas em sua estrutura de análise. E isso foi deliberado e não um descuido. Afinal, o objeto de estudo foi entender o futuro do ambiente de trabalho mediado pela tecnologia da informação. A abordagem etnográfica de Zuboff era simplesmente mais adequada para entrevistar gestores e trabalhadores sobre que os separava do que delinear os imperativos econômicos que ligavam cada empresa com a economia global. Assim, a máquina inteligente da imaginação de Zuboff operava em grande parte fora das restrições invisíveis que o capitalismo impunha aos gerentes e proprietários.

 

Embora a palavra “capital” tenha alcançado melhores resultados – o livro menciona algumas vezes -, Zuboff não a vê, como muitos fazem na esquerda marxista costumam fazer, como uma relação social ou um elemento eternamente antagônico ao trabalho. Em vez disso, ele seguiu os economistas neoclássicos ao entendê-lo como maquinário ou dinheiro atrelado a investimentos; “Trabalho”, por sua vez, foi tratado principalmente como atividade física. Embora Zuboff também tenha mencionado o papel histórico dos sindicatos, seus leitores não compreenderiam necessariamente o caráter antagônico de “trabalho” e “capital” – em vez disso, ouviram todos os tipos de histórias sobre conflitos circunstanciais em locais de trabalho individuais entre trabalhadores e administradores.

 

Isto não surpreende: Zuboff não era marxista. Além disso, ela era uma aspirante a professora na Harvard Business School. No entanto, sua defesa de locais de trabalho mais justos e dignos sugeriu que ela poderia ser, pelo menos em algumas questões, uma simpatizante de causas esquerdistas. O que a diferenciava das vozes mais radicais nesses debates era sua insistência contínua nos efeitos ambíguos da tecnologia da informação. A escolha entre “automatizar” e “informatizar” não era apenas um subproduto analítico de seus marcos conceituais ou uma mera proposição retórica. Em vez disso, ela apresentou-a como uma escolha real, existencial que as empresas modernas enfrentaram quando lidavam com a tecnologia da informação.

 

Tais escolhas binárias – entre o “capitalismo distribuído” e o “capitalismo gerencial” e entre “advocacy-oriented capitalism[1] e “o capitalismo de vigilância” – também motivariam os livros posteriores de Zuboff. Mas mesmo neste estágio inicial, não estava claro se havia embasamento para o salto analítico, a partir da observação com base em trabalho etnográfico, de que algumas das empresas estudadas efetivamente tiveram que fazer a escolha entre “automatizar” e “informatizar”, e daí para a conclusão mais geral de que as condições externas do capitalismo moderno, e cada vez mais o capitalismo da alta tecnologia, universalizaram essa escolha para todas as empresas, representando um novo ponto crítico no desenvolvimento capitalista.

 

Aceita pelo valor de face, a possibilidade de uma escolha real, em vez de uma postulação, entre “automatizar” e “informatizar” enfraqueceu as críticas tradicionais ao capitalismo como um sistema de exploração estrutural (e, portanto, inevitável) e de desqualificação do trabalho. Na nova era digital de Zuboff, uma aliança sagaz e harmoniosa entre trabalhadores e gerentes poderia permitir que firmas inteligentes e esclarecidas destravassem o poder emancipador da “informatização”.

 

Aqui poderíamos vislumbrar os contornos mais amplos da abordagem de Zuboff  sobre o capitalismo: seus males, alguns dos quais ele alegremente reconhecia, não eram o subproduto inevitável das forças sistêmicas, como a busca pela lucratividade. Em vez disso, elas eram a consequência evitável de determinados arranjos organizacionais, os quais, embora fizessem algum sentido em épocas anteriores, poderiam se tornar obsoletos devido à tecnologia da informação. Essa conclusão esperançosa foi derivada quase inteiramente da observação de empresas capitalistas, já que o próprio capitalismo – considerado como uma estrutura histórica, não como uma mera agregação de atores econômicos – estava quase sempre ausente da análise.

 

III.

Uma das chaves para entender a mais recente teoria do capitalismo de vigilância de Zuboff é a noção de “excedente comportamental”, um termo mais sofisticado do que o vulgar “escapamento de dados” [data exhaust], usado por muitos na indústria de tecnologia. Isso remete à distinção entre informatização e automação exposta em seu primeiro livro. Lembre-se que o texto eletrônico, que reaparece em seu último livro como o “texto oculto” [shadow text], tem imenso valor para os diferentes, e muitas vezes antagônicos, atores. Quando as “empresas orientadas para a ajuda” a implementam para “empoderar” os clientes – como a Amazon, por exemplo, faz com as recomendações de livros extraídas de compras de milhões de clientes -, o texto eletrônico segue o caminho utópico da “informatização”, alimentando o que Zuboff chama de “ciclo de reinvestimento comportamental”. Já quando as empresas de tecnologia usam os dados extraídos para direcionar propagandas e modificar comportamentos, elas criam um excedente comportamental – e esse desenvolvimento fundamental cria o “capital de vigilância.

 

O Google é o  grande exemplo da teoria de Zuboff. Em seus primeiros anos, quando ainda precisava de um modelo de negócios – o licenciamento da sua tecnologia de busca a outros sites foi um dos primeiros, mas insuficientes, geradores de receita – o Google tinha o potencial de se tornar a empresa “orientada para a ajuda” favorita de Zuboff: seu único incentivo para coletar dados era a melhoria do serviço. Depois que ele adotou a publicidade personalizada, as coisas mudaram. Agora, o Google queria que mais dados de usuários para vender anúncios, não apenas para melhorar os serviços. Os dados que acumulam para além da necessidade objetivamente determinada para atender os usuários – uma importante limiar que The Age of Surveillance Capitalism introduz, mas nunca teoriza explicitamente – é o excedente comportamental de Zuboff. Como uma empresa capitalista, o Google quer maximizar essa mais-valia expandindo-se em profundidade – penetrando ainda mais em nossos lares e nossas almas -, mas também em amplitude, oferecendo novos serviços em novas esferas e diversificando seus “ativos de vigilância”.

 

Ao longo de mais de setecentas páginas, Zuboff descreve esse “ciclo da expropriação” em toda a sua ignomínia: somos regularmente roubados, nossas experiências são sequestradas e expropriadas, nossas emoções são saqueadas, por “mercenários da personalidade”. Ela vividamente retrata o insuportável “entorpecimento psíquico” induzido pelos capitalistas de vigilância. “Esqueça o clichê de que, se for de graça, ‘você é o produto’”, ela atiça. “Você não é o produto; você é o cadáver abandonado. O ‘produto’ é derivado do excedente que é tirado da sua vida”. No entanto, o pior ainda está por vir, argumenta ela, a medida em que os gigantes tecnológicos deixam de prever o comportamento e passam a projetá-lo. “Já não é suficiente automatizar o fluxo de informações sobre nós”, adverte; “O objetivo agora é nos automatizar”.

 

Essa nova infraestrutura global para direcionar o comportamento humano produz “poder instrumental”, já que o “poder panóptico” do primeiro livro de Zuboff transcende as paredes da fábrica e penetra toda a sociedade. Ao contrário do poder totalitário, evita a violência física; inspirado pelos rudimentares insights behavioristas de B.F. Skinner, em vez disso, nos conduz a resultados desejados (pense em companhias de seguros que cobram planos mais caros para clientes que apresentam um risco maior). “A computação substitui, assim, a vida política da comunidade como a base da governança”, conclui Zuboff. Em vez de fundar um jornal fascista, o atual Benito Mussolini provavelmente estaria perseguindo capital de risco, lançando aplicativos e dominando a arte marcial de growth hacking.

 

somos regularmente roubados, nossas experiências são sequestradas e expropriadas, nossas emoções são saqueadas, por “mercenários da personalidade”

 

Zuboff compra muitas brigas, culpando por essa emergente “tirania” a assistência de intelectuais do Vale do Silício, um bando de idiotas úteis e empreendedores desonestos empoleirados em instituições para-acadêmicas como o MIT Media Lab. Nomear esse sistema devastador pelo que é, ela argumenta, é o pré-requisito para uma contra-estratégia eficaz, pois sua “normalização nos deixa cantando em nossas correntes*”. Não é tarefa fácil, já que o poder ideológico exercido pelas gigantes da tecnologia – com seus think tanks, lobistas e conferencistas – é imenso.

 

Os atuais debates políticos e regulatórios, no entanto, não conseguem compreender a dimensão sistêmica do problema. Importa se nosso comportamento é modificado por dez ou por dois “capitalistas de vigilância”? Insistir em “criptografia avançada, no aprimoramento do anonimato de dados ou na propriedade de dados” está equivocado, argumenta Zuboff, já que “tais estratégias apenas reconhecem a inevitabilidade da vigilância comercial”.

 

Ainda assim, Zuboff propõe algumas linhas de ação, repetindo a demanda de seu livro anterior por um direito ao refúgio, bem como insistindo em um direito ao “futuro”. O direito ao esquecimento europeu – que permite aos usuários solicitar que certas informações obsoletas ou errôneas desapareçam dos resultados de pesquisas – move-se nessa direção. Zuboff também tem esperança que um novo movimento social pressione por instituições democráticas mais fortes e garanta que a experiência humana não seja reduzida a uma “mercadoria fictícia” – como os “movimentos duplos” anteriores, descritos por Karl Polanyi em The Great Transformation, que desafiaram a mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro. Capitalistas iluminados, como a Apple, se encarregam do resto.

 

IV.

Mais do que apenas listar as vítimas do capitalismo de vigilância, o novo livro de Zuboff busca decifrar seu significado histórico de maneira mais ampla. Em uma frase: “O Google inventou e aperfeiçoou o capitalismo de vigilância da mesma forma que um século atrás a General Motors inventou e aperfeiçoou o capitalismo gerencial”. Essa frase não tenta sugerir que o que é bom para o Google também é bom para os Estados Unidos – embora essa proposta tenha gerado um amplo consenso entre muitas pessoas do governo Obama. Em vez disso, Zuboff argumenta que o capitalismo de vigilância não é o mesmo capitalismo de sempre, acrescido apenas de maiores ferramentas de vigilância; ao contrário, é uma nova “ordem econômica”, uma “forma de mercado”, uma “lógica de acumulação”.

 

Para compreender o funcionamento interno desse novo regime, devemos entender também as do seu predecessor. Alfred Chandler, o bardo do “capitalismo gerencial” de Harvard, foi um interlocutor importante e frequente nos primeiros trabalhos de Zuboff. Embora ele mal tenha sido mencionado em seu último livro, sua estrutura conceitual, postulando uma ruptura entre o capitalismo gerencial e seu sucessor baseado na vigilância, é inequivocamente Chandleriana.

 

Um professor de business history, Chandler argumentou que, a partir de meados do século XIX, a “mão invisível” do mercado, então composta de pequenas empresas predominantemente familiares, estava sendo cada vez mais dominada pela “mão visível” de administradores profissionais contratados por grandes corporações. Chandler se mostrou muito interessado nessa transformação: a coordenação administrativa de cima para baixo dentro de grandes corporações modernas reduziu drasticamente os custos de coordenação, o que possibilitou o tipo de atividade econômica que era difícil de realizar em um caótico mercado de pequenos produtores que tinham que negociar principalmente entre si.

 

A narrativa de Chandler tinha enorme poder explicativo. Sustentava que, a partir da década de 1850, as empresas de setores intensivos em capital aproveitaram o rápido desenvolvimento das tecnologias de transporte e comunicação para aumentar drasticamente a escala de suas operações. A revolução tecnológica permitiu-lhes acessar mercados novos e cada vez mais homogêneos, assegurar um maior e contínuo fornecimento de matérias-primas, bem como automatizar partes do processo de produção. Essa escala maior, por sua vez, levou a reduções drásticas nos custos de produção, resultando em preços mais baixos, para o deleite de novas gerações de consumidores.

 

Tal expansão corporativa exigia uma gestão cuidadosa e ativa, especialmente quando ficou claro que muitas funções anteriormente externas à empresa – da distribuição ao marketing, anteriormente delegadas a prestadores independentes de serviços específicos – poderiam agora ser feitas de forma mais eficaz e segura se fossem trazidas para dentro das empresas, em um processo conhecido como “integração vertical”. Os proprietários capitalistas, se esperassem permanecer no jogo, não tinham outra escolha senão recorrer à ajuda externa contratada.

 

É assim que nasceu a classe gerencial dos EUA. Sua premissa operacional, desde o início, era simples, mas poderosa: alcançar maior eficiência significava se tonar maior. Esses malditos marxistas, sempre falando sobre algo chamado “capitalismo monopolista”, simplesmente nunca haviam encontrado o tipo de líderes charmosos e conscientes que passaram pelas aulas de estratégia de Chandler na Harvard Business School. Seu poder de mercado era o ganho da sociedade. Marx, ao postular que a classe trabalhadora representava os interesses universais da humanidade, se equivocou: obviamente, para Chandler, era a classe gerencial.

 

Chandler foi aluno do grande sociólogo americano Talcott Parsons, que promoveu a abordagem funcionalista na sociologia. Segundo suas premissas, os sistemas sociais tinham certas necessidades, e sua realização – empreendida pelas várias partes constituintes – era parte integrante do funcionamento contínuo de tais sistemas. À medida que ocorre uma mudança histórica mais ampla, as necessidades dos sistemas sociais também mudam – assim como as funções e operações de suas partes constituintes. Um processo de adaptação começa. Os historiadores que trabalham na perspectiva parsoniana geralmente estudam esse processo narrando os muitos sucessos ou fracassos de adaptação diante do ambiente externo em mutação.

 

Como um bom parsoniano, Chandler fez exatamente isso ao afirmar que o capitalismo gerencial – a resposta evolucionária correta ao ambiente cambiante de meados do século XIX – surgiu à medida que as empresas seguiam os imperativos da mudança tecnológica. Eles o fizeram redefinindo a fronteira entre o mercado e a empresa (por meio da integração vertical) e inventando novas estruturas organizacionais (como a empresa multidivisional) com o objetivo de atingir uma maior eficiência. No caso norte-americano, essa adaptação aconteceu apenas em empresas que conseguiram alcançar o que Chandler chamou de “economias de velocidade”. Essas empresas poderiam aproveitar melhor a capacidade de produção existente simplesmente assegurando o fornecimento contínuo de matérias-primas e a distribuição mais rápida do produto final. Os mercados foram menos eficazes nessas duas tarefas; assim, essas funções tinham que ser incorporadas internamente – isto é, sob o controle dos gerentes.

 

Como Chandler descobriu, no entanto, outros países desenvolveram suas próprias formas de capitalismo gerencial, que não foram marcados pela presença de “economias de velocidade”. Sua teoria se expandiu para a perspectiva mais convencional de “economias de escala” e “alcance” (em que, por exemplo, uma empresa poderia fazer melhor uso de suas “capacidades organizacionais” existentes expandindo constantemente sua linha de produtos). As empresas que exploraram totalmente essas economias ganharam a vantagem de serem as primeiras e dominaram suas indústrias, o que, segundo Chandler, impulsionou a eficiência e a inovação de modo geral.

 

É importante entender o direcionamento geral do argumento de Chandler antes de retornar ao de Zuboff. Chandler começa concentrando-se no que parece ser um fenômeno inegável: a existência de grandes empresas com estruturas organizacionais semelhantes – o material do “capitalismo gerencial”. Supõe-se que esse arranjo social é mais eficiente do que o anterior – capitalismo familiar. Essa eficiência, por sua vez, é explicada pelo tamanho maior das empresas estudadas, enquanto o tamanho em si é explicado pela capacidade dos gerentes de coordenar melhor as coisas do que os mercados.

 

Vestindo o manto do historiador, o teórico dos negócios chandleriano se arrisca nos arquivos – para ilustrar o modelo analítico elaborado em outro lugar. A história dos negócios escrita dessa maneira é, na verdade, uma sociologia funcionalista disfarçada – e é de um tipo um tanto vulgar. São usadas grandes quantidades de evidências históricas apenas para encontrar provas da validade de modelos analíticos pré-selecionados e nunca questionados, organizados sob rubricas como o capitalismo gerencial.

 

Isso não é história, mas fishing expedition[2]. Afinal, o que mais poderia ser quando não é permitido a nenhuma evidência histórica refutar a relação causal original que sustenta o modelo analítico – aquele que postula que a mudança é impulsionada pela adaptação e evolução, não por lutas de poder e revoluções? Como resultado desse obstáculo analítico autoimposto, as relações de poder quase sempre desaparecem de vista. O calmo impulso formalista do modelo Chandler-Parsons de história nos coloca em uma espécie de democracia bizarra, na qual todos são forçados a se adaptar sem que nenhum esforço coletivo organizado surja para fazer com que alguns atores históricos se adaptem mais ou melhor que outros.

 

A história dos negócios de Chandler é apenas história por se basear em dados históricos para provar o que postula, ou seja, que o capitalismo gerencial é impulsionado pelos imperativos do capitalismo gerencial e sobrevive quem e aqueles que se agarram e se adaptam a estes imperativos. Podemos, é claro, encontrar muitas evidências históricas para ilustrar essa tese. No entanto, se as grandes empresas e seus gerentes não forem escrutinados pela lente analítica do capitalismo gerencial desde o início, poderemos descobrir muitas outras narrativas históricas e modelos analíticos para explicar a existência deles. Os historiadores normalmente testariam esses modelos uns contra os outros, estabelecendo aquele que com menos pode explicar mais. Mas os Chandlerianos geralmente pulam essa etapa – uma omissão crucial que muitas vezes se torna invisível à medida que eles montam fluxos de dados, gráficos, tabelas e definições para descrever o funcionamento interno do único regime que eles escolheram analisar.

 

V. 

O método de Zuboff, tanto em seu último livro quanto nos dois que o precederam, é Chandleriano ao pé da letra. No capitalismo de vigilância, como seu antecessor gerencial, supõe-se que haja imperativos que os capitalistas de vigilância bem-sucedidos devem seguir. São os imperativos: extrair dados e prever o comportamento. Aqueles que fazem isso bem – Google e Facebook – impulsionam as economias de escala (extraindo o máximo de dados possível), o escopo (obtendo dados de fontes variadas) e a ação (produzindo resultados desejados, como fazer com que os usuários cliquem em um anúncio ou tenham sua atenção dirigida à notificação de aplicativo fitness). Grande parte da The age of surveillance capitalism  está dedicada a explorar detalhadamente esses imperativos e economias. Zuboff elabora a dinâmica deles com gráficos reveladores e modelos lúcidos, mostrando como eles moldam as estratégias de negócios das empresas.

 

A explicação histórica de Zuboff para o surgimento e consolidação do capitalismo de vigilância também é de espírito Chandleriano. Assim como as empresas do século XIX enfrentaram uma escolha entre o capitalismo familiar e o capitalismo gerencial, a “civilização da informação” do início do século XXI encarou a escolha entre o advocacy-oriented capitalism e o capitalismo de vigilância. Este último triunfou devido a afinidades seletivas entre os imperativos dos capitalistas de vigilância, as necessidades de informação do Pentágono pós-11/9 e o ambiente propício criado pela desregulamentação neoliberal. Adeptos do advocacy-oriented capitalism, enquanto isso, não foram capazes de organizar a luta política para alicerçar o seu modelo em instituições políticas e sociais.

 

A nova escolha entre o capitalismo de ajuda e o capitalismo de vigilância não foi resultado da mudança tecnológica ou da concorrência nos negócios. Em vez disso, argumenta Zuboff, ela surgiu da mudanças nas necessidades dos consumidores. Ela se apoia aqui no trabalho de Joseph Schumpeter, outro dos mentores de Chandler, para colocar o consumidor no centro da mudança histórica: as mudanças nas necessidades dos consumidores desencadeiam novas estratégias de adaptação entre as empresas. Tais estratégias, no entanto, só se tornarão sustentáveis ​​- transformando-se em uma nova forma de mercado – se forem fortalecidas por novas leis e instituições.

 

Paradoxalmente, essa pressão para institucionalizar novas formas de mercado nem sempre vem dos consumidores, mas, sim, dos “movimentos duplos” daqueles afetados negativamente pelo processo de adaptação. (Os trabalhadores têm estado tradicionalmente à frente de tais lutas.) O paradoxo é facilmente resolvido, no entanto, uma vez que se presume que os interesses dos consumidores estejam alinhados com os dos trabalhadores que trabalham em grandes fábricas que impulsionam a eficiência; os segundos produzem produtos de consumo mais baratos que também são consumidos pelos próprios trabalhadores. Zuboff endossa integralmente a conclusão de Schumpeter de que “o processo capitalista, não por coincidência, mas em virtude de seu mecanismo, eleva progressivamente o padrão de vida das massas”. Marx é entendido mal novamente: os administradores não representam mais os interesses universais da humanidade, agora eles têm que dar seu papel aos consumidores.

 

Curiosamente, Zuboff não segue Schumpeter em sua previsão de que a combinação da indústria chandleriana de grande escala e da democracia de massa resultará no colapso do capitalismo, à medida que o empreendedorismo é domado pelo excesso de burocracia e pelas constantes demandas por mais bem-estar social. Em vez disso, ela vê os vários tipos de emancipação social alcançados pelos movimentos duplos como uma força estabilizadora que permitirá que cada nova forma de mercado, rica em potencial revolucionário, cumpra suas promessas iniciais.

 

De fato, ela argumenta que isso é exatamente o que aconteceu sob o capitalismo gerencial. Esse regime se baseava em reciprocidades mútuas entre capitalistas e sociedade: os trabalhadores recebiam salários decentes, mantinham-se calados e recebiam produtos relativamente baratos em troca. Esse regime, no entanto, não era algo definitivo e Zuboff acreditava na possibilidade de mudança e melhoria dentro do capitalismo, guiado pelas necessidades dos consumidores.

 

Por que renegociar algo que tem sido tão eficaz? Segundo Zuboff, o segredo obscuro por trás do capitalismo gerencial era o uso agressivo do marketing. Os deuses das vendas e do marketing fizeram produtos padronizados, como o Modelo T da Ford, para os consumidores que tiveram que padronizar a si mesmos. Mas a revolução da informação da década de 1990 prefigurou o fim de tal padronização forçada, especialmente quando os consumidores emancipados, pós-1968, se tornaram mais sofisticados e exigiram novas experiências. A decepção de Zuboff com o capitalismo de vigilância vem desta esperança anteriormente depositada em um regime que sucessederia e melhoraria o capitalismo gerencial. Seu livro de 2002, The Support Economy, em co-autoria com seu marido James Maxmin, argumentava que uma ordem econômica emergente muito diferente, “capitalismo distribuído”, seria justamente esse sucessor. E mudanças rápidas na tecnologia da informação tornaram isso ainda mais provável.

 

Uma empresa gerou bilhões com essa retórica contracultural de empoderamento individual e autodeterminação, exortando todos nós a “pensar diferente” – de preferência enquanto pagávamos por seus caros produtos

 

Assim como a ferrovia nos deu a “sociedade totalmente administrada” de Adorno, a web nos daria uma economia que apoia, não administra. Poderia até mesmo ressuscitar federações de firmas semelhantes a corporações, as que Chandler havia condenado ao lixo da história, cujas funções foram superadas por corporações centralizadas e verticalmente integradas. O futuro do capitalismo distribuído aumentava a desintegração vertical: as empresas não mais administravam seus próprios sistemas de contabilidade, folha de pagamento ou logística, mas simplesmente os agrupavam em uma única plataforma online compartilhada, acessível a todos os membros da federação. A desintegração vertical também significou que os conflitos sobre o conhecimento que surgiram no primeiro livro de Zuboff logo desapareceriam: as empresas grandes e centralizadas que deram origem a tais conflitos se dissolveriam gradualmente, transformando-se em entidades enxutas e horizontais sem aquela classe geraencial sempre faminta por poder.

 

A maioria das empresas, argumentou Zuboff e Maxmin, ainda estavam pensando em termos obsoletos ​​da produção em massa; eles usaram a tecnologia da informação para roubar a autonomia de seus clientes e tratá-los com condescendência. Em vez disso, essas empresas precisavam abraçar o “capitalismo distribuído” e cultivar consumidores sofisticados e multidimensionais. Isso era do interesse das empresas, aproximando-as de onde o valor estava agora. Sob o capitalismo gerencial, o valor foi produzido no “espaço organizacional” da firma; sob o capitalismo distribuído, deveria ser encontrado no exterior, no “espaço individual”. A tarefa da firma era capturá-lo:

 

Uma vez que o valor é considerado como inerente a indivíduos, tudo muda. As empresas não mais “criam” valor; eles só podem se esforçar para perceber o valor que já existe no espaço individual. Desta forma, o capitalismo distribuído expande ainda mais o conceito de propriedade. Não apenas a propriedade das ações está dispersa, mas o próprio valor está disperso. Indivíduos “possuem” as fontes de valor, como todo valor se origina de suas necessidades, e todos os fluxos de caixa advêm da realização dessas necessidades (…) Como origem do valor e da fonte de todo o fluxo de caixa, os indivíduos não podem mais ser reduzidos a meros “consumidores” anônimos que se situam no extremo oposto da cadeia de valor, se alimentando do valor criado pelos gestores e garantido pelos acionistas. Em vez disso, eles são partes interessadas (stakeholders) nas novas estruturas colaborativas, já que estão fundamentalmente alinhados com os requisitos de realização de valor que essa relação possui.

 

Traduzida para a linguagem de hoje, a premissa central de The Support Economy era que as empresas inteligentes deveriam aproveitar a oportunidade para oferecer “LaaS”: Life as a Service (A vida como um serviço). Essa foi uma resposta racional aos indivíduos modernos que abriram seus talões de cheques e passaram seus cartões de crédito não porque foram enganados pelos imperativos da produção em massa, mas porque, encorajados pelo aparato de apoio dos capitalistas iluminados, eles foram afinal “pioneiros em novos tipos de experiências de consumo, na esperança de encontrar o que buscavam”.

 

“Os atuais sonhadores da autodeterminação psicológica”, argumentou Zuboff e Maxmin, “querem comprar algo que nunca esteve à venda – o apoio para a inovação e o sustento de uma vida única”. As virtudes do capitalismo distribuído e sua superioridade sobre o capitalismo gerencial eram bastante óbvias: “Não mais uma abstração anônima, o indivíduo como a origem de todo valor e a fonte de todo o dinheiro desfruta de oportunidades estruturais para expressar a sua voz e participar das formas de governança”.

 

Uma empresa gerou bilhões com essa retórica contracultural de empoderamento individual e autodeterminação, exortando todos nós a “pensar diferente” – de preferência enquanto pagavamos por seus caros produtos. A partir de seu famoso anúncio de 1984, a Apple fez o melhor que pôde para convencer o público de que seus produtos eram as armas mais eficazes na rebelião global contra a rigidez da sociedade de massa. Zuboff acredita que o marketing era autêntico e que havia algo genuinamente sério na proposta da Apple de lançar uma nova modernidade. Em The Support Economy, ela já estava ansiando por “uma Federação da Apple”, que poderia “atrair indivíduos e grupos de interesse para o seu estilo tão inteligente quanto extravagante e seus valores criativos e de alta tecnologia”.

 

Tal Applefilia também permeia seu último livro. A empresa por um período manteve a promessa, escreve Zuboff, de “um capitalismo da terceira modernidade convocado pelas aspirações autodeterminadas de indivíduos nativos do meio digital”. Lamentavelmente, não surgiu nenhum appleismo correspondendo ao fordismo de Ford – a real tragédia dos anos 2000. Em vez disso, o modelo do Google venceu; o capitalismo gerencial foi seguido pelo capitalismo de vigilância, não pelo capitalismo distribuído.

 

VI.

 

As pressuposições de fundo presentes no argumento de Zuboff podem agora ser apresentadas mais explicitamente: “capitalismo gerencial”, consolidado por um pacto social entre capitalistas e sociedade, foi útil até certo ponto, mas, no início dos anos 2000, era hora de tentar algo novo. O capitalismo distribuído – reinventado em seu último livro como o advocacy-oriented capitalism – era seu herdeiro natural. A Apple poderia ter liderado um novo pacto social, mas fracassou nessa missão. O Google, por sua vez, se beneficiou das ansiedades em torno de vigilância, informação e dados digitais do pós 11 de setembro, ao mesmo tempo que décadas de vitórias políticas do neoliberalismo tornaram mais fácil evitar qualquer regulamentação. À medida que o capitalismo de vigilância triunfou sobre o tipo “orientado para a ajuda”, um duplo movimento deveria emergir para criar as condições institucionais que permitiriam ao appleismo preencher os espaços políticos e econômicos desocupados pelo fordismo.

 

Antes de avaliar a validade e a importância desses argumentos, é importante lembrar o quanto eles devem à estrutura chandleriana. A narrativa de Zuboff se sustenta porque é capaz de postular a existência de três regimes diferentes, cada um com seu próprio conjunto de diferentes imperativos e economias. Esses regimes descrevem as operações de grandes agentes econômicos: General Motors e Ford no caso do capitalismo gerencial; Google e Facebook no caso do capitalismo de vigilância; Apple e, anteriormente os protótipos da Alexa, da Amazon, no caso do advocacy-oriented capitalism.

 

Por si só, no entanto, tais descrições têm pouco peso, pois podemos encontrar muitas maneiras alternativas de delinear a realidade econômica e política. Tais abordagens alternativas podem invocar diferentes conjuntos de imperativos, mas ainda podem oferecer melhores relatos sobre o que impulsiona esses mesmos atores econômicos. O modelo analítico chandleriano, baseado em explicações funcionalistas, não admite facilmente a existência de narrativas alternativas. Seu forte poder explicativo deriva em parte de de sua postura autoimposta de funcionalismo onisciente; os chandlerianos frequentemente não se incomodam em usar explicações alternativas de qualquer maneira, mesmo que apenas para apontá-las como imprecisas. Como resultado, os tipos de questões relevantes que normalmente moldam a escolha dos esquemas explicativos – o modelo analítico escolhido explica a realidade melhor que os alternativos? tem muito poder preditivo alto? – raramente são perguntados.

 

Assim, os leitores de The Age of Surveillance Capitalism buscarão, em vão, a abordagem de Zuboff sobre o “capitalismo de plataforma” ou “capitalismo cognitivo” ou “biocapitalismo” – algumas das formas alternativas já estabelecidas de enquadrar o mesmo conjunto de problemas políticos. Que esses modelos analíticos rivais não explicam o “capitalismo de vigilância”, como Zuboff define, é óbvio; que eles não descrevem alguns dos mesmos fenômenos que ela coloca sob esse rótulo não é nada óbvio. E ainda assim a discussão de Zuboff sobre explicações e conceitos alternativos nunca chega. Talvez setecentas páginas não foram suficientes.

 

O mesmo problema afetou seus livros anteriores. The Support Economy não faz menção dos longos debates sobre o pós-fordismo (um termo que nunca aparece no livro). In the Age of Smart Machines, da mesma forma, ignora as críticas à automação, bem como as sugestões abundantes para o uso da tecnologia da informação de maneiras mais humanas e não automatizadas – sugestões que já haviam sido feitas pela já esquecida disciplina de cibernética e administração (management cybernetics). Zuboff trabalha em um estilo muito diferente: ela descreve o que ela acredita ser um fenômeno único, descrevendo-o em profundidade, mas sem construir nenhuma ponte (nem que seja para queimá-las) com as concepções alternativas desse mesmo fenômeno.

 

O mundo precisa de um novo Chandler para entender a transformação do capitalismo na era digital? Se sim, Zuboff é a candidata favorita. Mas as grandes tendência de mudanças históricas indicam fortemente que precisamos de menos Chandler, não de mais. O arcabouço chandleriano, apesar de todas as suas sacadas analíticas, demonstra uma cegueira crônica em relação às relações de poder – resultado de sua inata falta de curiosidade por explicações não-funcionalistas. Isso, por sua vez, limita as oportunidades de os chandlerianos detectarem imperativos frequentemente tácitos, mas inevitáveis, impostos pelo sistema capitalista. Como resultado, todas essas teorias – de “capitalismo gerencial”, “advocacy-oriented capitalism”, “capitalismo de vigilância” – têm muito a dizer sobre cada um dos adjetivos que os qualificam, mas silenciam sobre questões do próprio capitalismo, geralmente reduzindo-o a algo relativamente banal, como o fato de haver mercados, commodities e pactos sociais ocasionais entre os capitalistas e o resto da sociedade.

 

A recepção do trabalho de Chandler é um exemplo disso. Para seus críticos, o relato de Chandler sobre o capitalismo gerencial era apenas um conto de fadas elaborado, que permitia às elites americanas legitimar suas normas e padrões com mitos que rivalizavam com os que agora surgem do Vale do Silício. Chandler elogiou os quadros gerenciais dos Estados Unidos, os supostos defensores da eficiência, por servir não aos interesses do capital, mas aos interesses da sociedade. Zuboff bebeu muito na fonte de Chandler, criticando apenas a durabilidade do capitalismo gerencial frente às mudanças tecnológicas, seu impacto negativo nos consumidores e sua cultura organizacional altamente hierárquica, narcisista e sexista.

 

Os críticos de Chandler, em contraste, acusaram-no do crime metodológico de reverter a causalidade da explicação histórica. O que impulsionou a expansão da indústria americana foi uma busca por lucro e poder, não uma busca por eficiência; a eficiência, onde surgiu, era o subproduto desta busca. Com foco na rentabilidade de longo prazo, as empresas tentaram aumentar sua participação de mercado por meio de práticas anticompetitivas, como descontos, propinas e contratos exclusivos. Os preços baixos não foram apenas alcançados, ou não majoritariamente, através da eficiência, mas também externalizando os custos de produção na sociedade (por exemplo, poluição), suprimindo direitos trabalhistas e obstruindo modelos alternativos de organização social não comerciais.

 

E ainda assim a discussão de Zuboff sobre explicações e conceitos alternativos nunca chega. Talvez setecentas páginas não foram suficientes.

 

Essas novas atividades, às vezes subversivas, exigiam uma nova classe gerencial. No entanto, o lobby, a sabotagem e o ativismo anti-trabalhista de fora da empresa importavam tanto quanto o que fazia a administração inteligente dentro dela. Tais ações dificilmente foram impulsionadas por preocupações com a eficiência, mesmo que aumentassem o tamanho das empresas. Muitas das fusões horizontais celebradas por Chandler foram, da mesma forma, movidas apenas pela necessidade de consolidar o poder, ou simplesmente sobreviver; muitas vezes, elas até reduziram a eficiência. As grandes empresas precisam ser avaliadas não apenas em termos de eficiências produzidas, mas também em termos de eficiências suprimidas.

 

Para os críticos, a questão principal não era se as mãos que coordenavam a sociedade eram visíveis (à la Chandler) ou invisíveis (à la Adam Smith), mas sim se estavam sujas. E, na maior parte, eles estavam – especialmente quando se tratava de obter um fornecimento contínuo de matérias-primas do exterior. Nesse contexto, as louvações de Chandler ao capitalismo gerencial eram apenas o outro lado das teorias do subdesenvolvimento defendidas por economistas críticos da América Latina: o bom funcionamento do capitalismo gerencial americano se deu às custas de economias estrangeiras, tornando-as altamente disfuncionais e lentas em seu desenvolvimento. Essas economias tornaram-se meros apêndices do sistema de produção americano, incapazes de desenvolver sua própria indústria.

 

A discordância mais importante surge, assim, sobre quem “construiu” o capitalismo gerencial. Para Chandler, o impulso exógeno do desenvolvimento tecnológico e os imperativos da sociedade de massa. Para seus críticos – que preferiam termos como “liberalismo corporativo” -, foram os capitalistas que, encontrando aliados no aparato estatal, se apropriaram de tecnologias abertas a diversos usos as usando para interesses corporativos limitados e restritos. Os gerentes eram a consequência, e não a causa, de tais desenvolvimentos.

 

Dado que Zuboff, como Chandler, não precisou lidar com essas críticas, ela pôde se dar ao luxo de sentir nostalgia, em seu trabalho anterior, sobre as “reciprocidades construtivas de consumidores e produtores” do capitalismo gerencial. A tese do “liberalismo corporativo” não era desconhecida de Zuboff, ela cita Martin Sklar, um dos principais defensores da tese, em The Support Economy. E ainda assim ela não fez uso de tais críticas. Em vez disso, ela continuou a ver o capitalismo gerencial como um compromisso ganha-ganha entre consumidores, trabalhadores e produtores; uma construção erguida por meio de instituições democráticas, mas, infelizmente, ainda sem oportunidades para a autorrealização individual.

 

Uma análise completa dos métodos e custos do capitalismo gerencial, no entanto, deve olhar para além do eixo consumidor-produtor-trabalhador. O que significou para as relações raciais, as estruturas familiares, o meio ambiente, o resto do mundo? O que acontece com a autodeterminação das pessoas fora do mercado? Não deveria o suposto regime que o sucedeu – quer esteja enraizado no advocacy-oriented ou na vigilância – ser avaliado nesta escala muito maior de custos potenciais? Essas considerações adicionais, no entanto, nunca entram realmente em cena, já que o teor funcionalista geral do argumento já dita os próprios critérios nos quais a atratividade do novo regime deve ser avaliada.

 

VII.

 

É muito mais fácil lidar com os paradoxos do pensamento de Zuboff se a considerarmos como uma contraparte americana do marxismo autonomista italiano. Se Toni Negri lecionasse na Harvard Business School, provavelmente ele soaria como Shoshana Zuboff. Ao examinar as ruínas da sociedade industrial no final dos anos 1970, os italianos – mais conhecidos através do trabalho de Negri, mas compreendendo muitos outros pensadores interessantes – chegaram a conclusões muito semelhantes às dela. Como Zuboff, eles viam a tecnologia da informação como uma força potencialmente libertadora, algo que poderia ajudar a liberar as habilidades cognitivas e comunicativas dos trabalhadores após o longo período de repressão a que se expuseram sob o regime físico-trabalhista do taylorismo.

 

Assim como o consumidor de massa padronizado de Zuboff foi substituído pelo consumidor idiossincrático e individualizado que cria valor fora da fábrica, também o “trabalhador de massa” taylorista dos autonomistas foi superado pelo “trabalhador social”. Essa figura recém-criada também criou valor fora da empresa, no que os autonomistas chamaram de “fábrica social”. Essa suposição aparentemente inócua desafiava as teorias ortodoxas da esquerda que restringiam a adesão da classe trabalhadora aos trabalhadores das fábricas, ignorando o imenso trabalho nas margens invisíveis da fábrica social – por exemplo, o trabalho doméstico das mulheres, que era essencial para a continuidade da produção.

 

Quando os trabalhadores assalariados começaram a se rebelar na década de 1970, os capitalistas foram expulsos das fábricas. Eles não sofreram muito, e logo aprenderam a se apropriar do valor escondido à margem da “fábrica social”, mercantilizando muitas das atividades que antes eram oferecidas pelo estado de bem-estar social ou por acordos informais. Assim nasceu a economia do serviço.

 

Mas aqui os programas normativos divergem. Zuboff esperava anteriormente que os mais esclarecidos entre os capitalistas pudessem inaugurar o próximo estágio humano – o da “economia de apoio”. Os autonomistas, então marginalizados ou exilados após décadas de protestos e turbulências políticas, viam a extração de valor da fábrica social como apenas outra forma de usura: um imposto desnecessário sobre a atividade social da “multidão” autônoma e desobediente, seu sujeito político coletivo preferido. Eles pressentiram outros problemas. Como o trabalho era cada vez mais colaborativo e intangível, não era mais possível pagar aos trabalhadores – muito menos àqueles que se encontravam à margem da fábrica social, que raramente eram compensados ​​- por sua contribuição individual e facilmente visível para a produção. Para restaurar a justiça, os autonomistas italianos exigiram renda básica universal.

 

Eles não postulavam os mesmos imperativos que Zuboff, mas o pressuposto de sua teoria era uma suposição tão funcionalista quanto as de Chandler ou de Parsons: o que impulsionava o capitalismo não era tanto sua necessidade de expandir, mas, antes, a capacidade do trabalho de estar sempre um passo à frente do capital, ameaçando seu predomínio a cada movimento. Assim como Zuboff postulava que os consumidores desejavam e, então, os capitalistas se adaptavam, os autonomistas sustentam que os trabalhadores avançam e os capitalistas se adaptam – geralmente recuando. Essa explicação das coisas tinha grande poder retórico, mas foi de pouca ajuda para traçar estratégias políticas: entender o período entre 1970 e 2010 como um recuo do capitalismo desorganizado diante de uma multidão bem organizada requer muita imaginação criativa. Os autonomistas tinham uma grande tese, com imperativos e tudo, e recorreram à história e aos assuntos atuais para encontrar evidências suficientes para provar isso. Mas como foi o caso dos funcionalistas chandlerianos, a relação deles com explicações alternativas muitas vezes deixava muito a desejar.

 

Quando as fábricas reais começaram a fechar e se mudar para oriente, os italianos também mudaram de foco. Depois de um tempo, eles produziram uma teoria do “capitalismo cognitivo”, que pregava a emancipação iminente de trabalhadores cognitivos e imateriais dos antigos vínculos do taylorismo. Não havia mais nenhum porto seguro para os capitalistas se retirarem: a digitalização de tudo significava que a multidão havia vencido a guerra. E, como os habitantes da fábrica social estavam esperando por suas reparações, por que não defender medidas transitórias como uma renda básica universal?

 

entender o período entre 1970 e 2010 como um recuo do capitalismo desorganizado diante de uma multidão bem organizada requer muita imaginação criativa

 

Em seu segundo livro, Zuboff também parecia ter perdido o interesse pela produção. Embora dedicasse muitas páginas sobre o poder das federações de empresas, The Support Economy tornou a produção quase invisível. Seria uma admissão tácita de que a ambiguidade de seu primeiro livro havia sido resolvida – e não em favor dos trabalhadores? Talvez. Nem o trabalho administrativo nem a produção industrial haviam adotado a “informatização”. Trabalhadores de outros setores logo se viram presos em novos templos de “poder panóptico”, como os armazéns da Amazon. Trabalhadores administrativos não se saíram muito melhor, com alguns  acorrentados digitalmente a “smart desks” que monitoraram todos os seus movimentos. A indústria 4.0 da Alemanha – a iniciativa mais avançada do mundo em produção digitalizada – é o ápice do taylorismo, não da democracia no local de trabalho.

 

Com a produção em grande parte fora de cena, a natureza mutável do consumo foi a responsável por justificar o otimismo inicial dos muitos profetas da sociedade pós-industrial. Nossa vida profissional pode não ter nos empoderado muito, mas poderíamos, talvez, recuperar alguma dignidade por meio do “consumo individualizado” – um dos conceitos-chave de The Support Economy. Você não precisava estar na Harvard Business School para contemplar essas mudanças. De fato, muitos da esquerda se juntaram ao movimento. Marxism Today, a finada publicação teórica do Partido Comunista da Grã-Bretanha, foi a mais exuberante, eventualmente abrindo o espaço parra a “Terceira Via” de Tony Blair, caminho entre o neoliberalismo piedoso e anti-thatcherista e o amável comunitarismo consumista.

 

Os italianos não foram tão longe, mas ampliaram o conceito da fábrica social para incluir o consumo: em seu esquema, os consumidores eram na verdade “prosumidores”, envolvidos em “trabalho imaterial”, como, por exemplo, produzindo involuntariamente o valor intangível de marcas. O “prosumo”, no entanto, não foi a única função social atribuída aos membros da “multidão”; nem algo a ser celebrado. Diagnosticar o prosumo como fonte de extração de valor não era endossá-lo, mas argumentar que as formas padrões de contabilizar o valor, incluindo aquelas facilitadas por muitos marxistas ortodoxos, eram inadequadas.

 

Aqui as diferenças normativas aparecem mais uma vez. Para Zuboff, professora de administração, uma reorientação do ethos corporativo era o correto; a condescendência da produção em massa seria substituída pelo apoio e defesa dos interesses dos consumidores. Os consumidores emancipados pagariam em dinheiro para satisfazer suas necessidades, enquanto os capitalistas esclarecidos ajustavam seus modelos de negócios de acordo: não havia indício de conflito social porque o “prosumo” e seus equivalentes (The Support Economy nunca usa esse termo) é, na teoria de Zuboff, o que os consumidores desejavam o tempo todo.

 

Os italianos discordaram e insistiram em encontrar maneiras de redistribuir parte do valor àqueles que trabalhavam na fábrica social. Além de uma RBU, eles queriam mais bem-estar (a precondição de um desenvolvimento social sólido), mas o reinventaram como “comum”, com um modelo administrativo radicalmente democratizado no qual os cidadãos – e não os burocratas – estariam no comando.

 

VIII.

 

O que fazer com essas teorias em 2019? O maior desafio para os italianos tem sido a dificuldade de implementar sua utopia de auto-empoderamento coletivo por meio de instituições horizontais, descentralizadas e não estatais. Embora as policlínicas ou escolas autogeridas fossem fáceis de imaginar, especialmente na década de 1970, como é possível supor que uma Inteligência Artificial ou uma infraestrutura de computação em nuvem autogerida surgisse, especialmente na ausência de um suporte do Estado, há muito desprezado? E, na ausência de infraestrutura de informática gerida pelas cidadãos, o que é uma escola autogerida que seria totalmente dependente do Google?

 

A premissa chave da teoria autonomista italiana – de que o capital estava se tornando externo ao trabalho, permitindo que trabalhadores cognitivos capacitados, agora dispersos pela fábrica social, se auto-empoderassem – parece cada vez mais questionável. A concepção dos tecnocapitalistas como rentistas passivos e autônomos, por parte dos autonomistas, é difícil de ser conciliada com os maciços investimentos bilionários realizados pelos gigantes da tecnologia de hoje. Se estes são os rentistas, então quem são os capitalistas?

 

Contudo, os autonomistas forneceram uma visão utópica de proporções quase bíblicas: o capital, em sua transição para a economia de serviço, libera inadvertidamente os trabalhadores, transformando os capitalistas em pequenos parasitas dentro de redes globais mais amplas de cooperação social. Dado que alguns meios de produção imaterial – por exemplo, software livre ou Wikipedia – estão agora fora do controle capitalista, a multidão, ao contrário dos trabalhadores da produção em massa, pode fugir de suas prisões e prosperar de forma autônoma. A fábrica social se transforma em uma grande e feliz acampamento.

 

Como a maioria das instituições alternativas da sociedade emancipada não surgiram, a visão italiana, encolhida a slogans vulgares, agora sobrevive principalmente na ideia de que usuários de plataformas tecnológicas produzem valor e devem ser pagos por isso, através de uma renda básica ou garantida de alguma outra forma . Algumas recentes propostas européias para instituir um novo tipo de imposto sobre serviços digitais usam proposições similares, insistindo que os dados fornecidos por seus usuários é o que explica o imenso sucesso comercial desses serviços e, portanto, eles devem ser tributados de acordo.

 

Localizada muito mais perto da sede administrativa do que da fábrica social global, Zuboff, em contraste, não via os capitalistas se tornarem supérfluos. Nem tampouco desejava torná-los dispensáveis, a julgar pelo seu trabalho anterior a The Age of Surveillance Capitalism. Seria muito melhor para a sociedade moderar os capitalistas, argumenta Zuboff, exigindo algum tipo de humanismo corporativo barato. Além disso, não havia motivo para insistir em que os dados e outros tipos de elementos intangíveis fornecidos pelos consumidores exigiam arranjos tributários específicos, muito menos novos esquemas de redistribuição, como a renda básica. Defender isto significaria um retrocesso para o capitalismo distribuído: afinal, a total realização das necessidades dos consumidores não seria possível sem haver a apropriação desses dados. No capitalismo distribuído, os consumidores satisfizeram a maioria de suas complexas necessidades – dessa forma, são eles que devem realmente pagar.

 

Mas em 2013, quando Zuboff publicou o artigo no Frankfurter Allgemeine Zeitung, que culminaria em sua teoria do capitalismo de vigilância, os motivos para seu otimismo inicial haviam desaparecido. O capitalismo distribuído não havia chegado. Em vez disso, a pior faceta do capitalismo gerencial – o método taylorista de extrair conhecimento tácito para controlar os trabalhadores – se tornou a racionalização de toda a fábrica social, não apenas de seus setores produtivos. Agora invadiu e ultrapassou uma parte fundamental da economia capitalista – o consumo – que antes animava Zuboff. (Por mais inovadora que a revolução neotaylorista de Zuboff possa parecer em 2019, vale a pena notar que alguns dos observadores mais radicais do capitalismo de alta tecnologia – como o sociólogo britânico Frank Webster – postularam a chegada do “taylorismo social” impulsionado pela vigilância já no final dos anos 80).

 

Se o taylorismo extraiu e racionalizou o conhecimento tácito do trabalhador, o capitalismo de vigilância extrai e racionaliza o conhecimento tácito do consumidor supostamente emancipado. Como observa Zuboff, “o foco mudou de máquinas que ultrapassam os limites dos corpos para máquinas que aproveitam todo os tipos de informações para modificar o comportamento de indivíduos, grupos e populações a serviço dos objetivos do mercado”. O “capitalismo gerencial” perseguia e automatizava o corpo; o “Capitalismo de vigilância” persegue e automatiza a mente.

 

Enquanto o poder do taylorismo era bruto e seus métodos visíveis, o novo regime esconde seus rastros, criando uma ilusão de autonomia genuína. Mas, por trás da fábrica social de hoje, há uma complexa rede de processos algorítmicos e de extração de dados que transformam nossa existência cotidiana em mais um tipo de matéria-prima. Assim, a assustadora previsão do primeiro livro de Zuboff, de que a tecnologia poderia aumentar o “poder panóptico” dos gerentes, não apenas aconteceu, mas foi realizada em uma escala muito maior – e no próprio espaço individual, fora das empresas, que seu segundo livro havia postulado como um potencial local de libertação. Assim, a tarefa de seu livro mais recente é documentar a natureza destrutiva dessa expansão, bem como insistir que um retorno ao capitalismo mais humano e advocacy-oriented ainda é possível: a fábrica social pode informar, não apenas automatizar .

 

Vista através das lentes do capitalismo de vigilância, a utopia italiana dos trabalhadores cognitivos fugindo das amarras do capitalismo estava destinada ao fracasso desde sempre: nossas instituições digitais estão surdas às demandas da multidão, marchando ao ritmo do capitalismo de vigilância. O que, de forma traiçoeira, estrutura todas as nossas interações sociais com apenas um objetivo: extrair mais dados, vender anúncios, nos levar a resultados sociais mais “positivos” – mas positivos para quem? À medida que os smart capitalistas digitalizaram a fábrica social, ela se transformou novamente na fábrica que sempre foi. Aqui, o valor é gerado não pela extração de renda ou dividendos, como os italianos ainda defendem hoje quando, por exemplo, discutem finanças ou o algoritmo de PageRank do Google. Não, em vez da figura quase pré-capitalista do rentista alavancar os direitos de propriedade para apropriar-se da mais-valia social, estamos lidando com empresas capitalistas normais sujeitas a leis e imperativos padronizados.

Quaisquer que sejam as semelhanças, há uma diferença fundamental entre Zuboff e os italianos: aonde eles tendem a pensar em termos da multidão, por mais ambíguo e enganoso que esse conceito possa ser, Zuboff pensa em termos de singularidade – a do consumidor soberano. Sua versão digital da fábrica social lembra o Go, o supermercado automatizado, sem caixa, que a Amazon está lançando agora em todo os Estados Unidos: o único ator social visível que existe é o consumidor. Todos os movimentos sociais que ela invoca servem ao papel secundário de meramente ajudar este consumidor na busca da sua autorrealização; as esparsas referências ao estado em The Age of Surveillance Capitalism também aparecem neste mesmo contexto. Previsivelmente, portanto, as escolhas são poucas: permitir que o consumidor tire proveito do advocacy-oriented capitalismo para a sua autorrealização, ou se render à pilhagem dos capitalistas de vigilância, que irão sequestrar a mente do consumidor na busca de seus próprios objetivos.

 

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[1] Escolho aqui deixar no original pela difícil tradução. Algumas traduções o colocam como “capitalismo orientado à ajuda” ou “capitalismo orientado ao bem-estar”. Porém, tais traduções não dão conta dos sentidos e nuances da expressão. Advocacy é um termo muito específico que remete a uma série de práticas de defesa dos interesses de algum grupo, possuindo, assim, uma dimensão de ativismo. Compartilho da leitura de Morozov em colocar a construção teórica de Zuboff como ancorada em um “liberalismo progressista”, como veremos a seguir. Assim, o termo advocacy faz parte do entendimento da autora de que uma relação de reciprocidade entre consumidores e empresas, com os indivíduos pagando “livremente” para realizar suas necessidades e desejos, representaria algum empoderamento, uma possibilidade de emancipação individual por meio do mercado.

[2] fishing expedition é um termo que designa uma investigação especulativa, sem objeto certo ou determinado, cujo objetivo é “pescar” algum indício, prova ou evidência que embase uma hipótese previamente formulada.

 

Essa tradução integra o projeto ECONOMIA PSÍQUICA DOS ALGORITMOS: RACIONALIDADE, SUBJETIVIDADE E CONDUTA EM PLATAFORMAS DIGITAIS, coordenado pela profª Fernanda Bruno, com a apoio do CNPq.