DOBRAS #43 // DA WEB AOS APPS: ECONOMIA DE DADOS, CORPO E GÊNERO NA TRAJETÓRIA DA BABYCENTER LLC

25 de março de 2021

Por Mariana Antoun

Este texto é uma adaptação de projeto de pesquisa de mestrado apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ

Quando engravidei, uma das primeiras coisas que fiz foi me cadastrar em um grande site de conteúdo sobre gestação, parto, maternidade. Inseri a data da minha última menstruação, meu nome, endereço eletrônico e voilà: meu correio eletrônico foi tomado por relatórios diários que diziam qual deveria ser o tamanho estimado do meu bebê, qual era a sua provável constituição física e até psíquica. O que acontecia dentro do meu corpo e que há dois séculos era puro mistério, tinha forma, tamanho, peso, fluidos, vida. O site era o BabyCenter.com. Sete anos após o nascimento da minha filha, ainda recebo mensagens esporádicas sobre seu possível desenvolvimento e temas correlacionados à parentalidade. Esquecido entre mensagens indesejadas na minha caixa pessoal, o site reapareceu em pesquisa exploratória para delimitar o objeto deste trabalho.

E-mail enviado à mãe de uma criança de 6 anos e 10 meses

 

Cheguei ao BabyCenter a partir da exploração e hierarquização de aplicativos voltados para acompanhamento do ciclo menstrual (menstruapps) e acompanhamento de gestação, interessada em compreender como se dá a interação entre tecnologia e corpo reprodutivo, considerando uma lógica algorítmica contextualizada em modelos de negócios digitais.  Sob o nome fantasia, em português, “Minha gravidez e meu bebê hoje”, estava o BabyCenter. Disponível na Play Store, da Google, o app conta com mais de 10 milhões de instalações e ocupa a terceira posição entre as aplicações mais baixadas da categoria “criando filhos” (parenting), recém-criada pela Google. Na App Store, a loja da Apple, o aplicativo adota o mesmo nome e ocupa a 20ª posição na categoria “Saúde e fitness” (health and fitness). 

A quantidade exata de downloads não está disponível, embora na sua descrição nas lojas BabyCenter informe ser utilizado por “mais de 400 milhões de mães e pais no mundo inteiro”. O BabyCenter se descreve como “a maior ferramenta digital do mundo para pais e mães, oferecendo informação e apoio com um alcance de 100 milhões de pessoas por mês”. A Wikipedia define o BabyCenter como uma plataforma de mídia. Sim, de mídia. E essa informação é importante. A partir de uma oferta de conteúdo gratuito, a plataforma atrai seus clientes. E, em tese, basicamente dois modelos sustentam negócios de mídia: assinatura e anúncios.

A BabyCenter LLC, desenvolvedora do aplicativo, teve início com a criação do site BabyCenter.com, fundado no Vale do Silício em outubro de 1997 por dois estudantes da Universidade de Stanford (Califórnia, Estados Unidos). Matt Glickman e Mark Selcow receberam um aporte inicial de 13,5 milhões de dólares para viabilizar o projeto. A BabyCenter cresceu rápido e em 1999 foi vendida para uma companhia chamada eToys, por 190 milhões de dólares em ações. Menos de dois anos depois, a eToys quebrou e o site foi repassado à gigante Johnson & Jonhson por 10 milhões de dólares. Em agosto de 2019, enquanto este projeto de pesquisa era entregue para avaliação, a companhia mudou novamente de mãos, com a venda para o grupo Everyday Health Group, uma divisão da J2 Global, Inc. por quantia não divulgada.

 

Economia de dados, corpo e gênero

Não é novidade que aplicativos destinados ao acompanhamento da gravidez, assim como aplicativos de acompanhamento de ciclo menstrual (menstruapps), são mantidos principalmente com base na produção e análise de dados. São os dados que irão conectar anunciantes a clientes, de forma segmentada e direcionada. O vídeo How period apps are making other people rich, publicado no canal do Youtube do Jornal The Guardian, e o dossiê Menstruapps – Como transformar sua menstruação em dinheiro (para os outros?), elaborado pelo projeto Chupadados, da organização Coding Rights, alertam que aplicativos de controle do ciclo menstrual coletam e compartilham uma infinidade de dados pessoais de milhões de menstruantes* e estão ganhando dinheiro com isso. 

A partir da reconstrução da trajetória do BabyCenter.com, que se desdobrou em um dos aplicativos de acompanhamento de gestação, parto e parentalidade mais baixados em todo o mundo, pretende-se desenvolver as questões centrais dessa pesquisa: são mesmo os dados e rastros gerados por aplicativos deste tipo, os responsáveis pela viabilidade econômica dos mesmos? Por quê? Como analisar as implicações da mudança de suporte, de site para aplicativo, no que diz respeito à complexidade dos dados gerados, disponibilizados, ocultados, traficados? Quais mecanismos de enganchamento (BENTES, 2018) são utilizados para tal?

E as perguntas seguem: qual o valor dos dados sobre corpos cis femininos que engravidam** e sobre seu ciclo reprodutivo? Qual o modelo de parentalidade performado por esse tipo de aplicativo e como ele se reproduz na lógica do modelo de negócios que eles adotam? O que isso tem a ver com práticas de auto-rastreamento (LUPTON, 2019), com o trabalho reprodutivo (FEDERICI, 2017), com o domínio do corpo feminino?  

No artigo “The Big Other: Capitalismo de Vigilância e perspectivas para uma civilização de informação” Shoshana Zuboff (2018) apresenta a Google como empresa fundacional do que ela chama de “capitalismo de vigilância”. Para a autora, esse capitalismo é o “componente fundamental de uma nova lógica de acumulação”. Contudo, antes de se tornar o que Zuboff descreve como “a mais bem-sucedida empresa de big data“, o primeiro produto da empresa, o buscador Google, foi colocado no ar para atender a uma demanda reprimida dos primeiros anos da web, sem um plano claro para se tornar lucrativo. A partir do aumento das pressões por lucro, a empresa adotou um modelo de negócios que privilegiava o crescimento em larga escala.

Eles então optaram por propaganda. A nova abordagem dependia da aquisição de dados de usuários como matéria-prima para a análise e produção de algoritmos que poderiam vender e segmentar a publicidade através de um leilão exclusivo, com precisão e sucesso cada vez maiores. À medida que as receitas da Google cresciam rapidamente, aumentava a motivação para uma coleta de dados cada vez mais abrangente (ZUBOFF, 2018). Zuboff nos lembra em seu artigo sobre o Google, que os verdadeiros clientes dessas plataformas não são seus usuários, mas sim os anunciantes.  “There is no free lunch“***.

Diante desse contexto, questiono: quem são os atores que disputam a atenção e os dados deste corpo? De que modo as subjetividades, os afetos, os desejos, a atenção e a percepção estão sendo mobilizados e modulados por esses atores? Qual o efeito da mediação (LATOUR, 2012) dos algoritmos sobre subjetividades, emoções e condutas?  Como estes aplicativos dialogam com a performance do corpo grávido do sujeito-mãe?  Como aplicativos de gravidez, parto e parentalidade, como o desenvolvido pelo BabyCenter ajudam a alimentar o que Fernanda Bruno chama de Economia Psíquica dos Algoritmos e como isso se relaciona com capitalismo e feminismo? 

Estamos diante de um laboratório-mundo intimamente conectado às engrenagens do capitalismo de dados pessoais, onde uma complexa e crescente economia psíquica e emocional nutre algoritmos que pretendem nos conhecer melhor do que nós mesmos, além de fazer previsões e intervenções sobre nossas emoções e condutas. A inquietação cresce quando nos damos conta de que os muros dos tradicionais laboratórios científicos e psicométricos dão lugar a uma caixa preta digital bastante opaca, pouco inteligível para aqueles que são seus “usuários” e suas fontes de conhecimento (BRUNO, 2018).

 

* É da pesquisadora Gabriela Palletta que tomo emprestado o cuidado de chamar de menstruantes “aqueles corpos que possuem um ciclo menstrual, independentemente de seu sexo ou gênero”. Em sua dissertação de mestrado Menstruapps na era farmacopornográfica: aplicativos de monitoramento de ciclo menstrual e interseções entre corpos, máquinas e tecnopolíticas de gênero, Palletta aponta alguns caminhos para articularmos o pensamento sobre essa relação entre corpo e aplicativos móveis, dados subjetivos e capitalismo, mulher e controle. 

** Recentemente, em artigo publicado pela Pagu, Aplicativos de monitoramento do ciclo menstrual e da gravidez – corpo, gênero, saúde e tecnologias da informação, Gabriela Paletta, Marina Nucci e Daniela Manica avançam nas reflexões sobre corpo, saúde, tecnologias e gênero, e esses sujeitos menstruantes passam a ser chamados de  corpos cis femininos que engravidam.

*** A expressão “Não existe almoço grátis” foi utilizada em artigo do economista e Prêmio Nobel Milton Friedman. De lema liberal, a frase passou a ser utilizada fora dos círculos acadêmicos e  ganhou popularidade.

 

Referências:

BENTES, Anna Carolina Franco. Quase um tique: economia da atenção, vigilância e espetáculo a partir do Instagram. Rio de Janeiro, 2018. Dissertação (Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura) – Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2018.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social. Salvador: Edufba, 2012; Bauru: Edusc, 2012.

LUPTON, Deborah. Self-Tracking Modes: Reflexive Self-Monitoring and Data Practices. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2483549>. Acesso em 13 de out. 2019.

PALETTA, G. C. .; NUCCI, M. F. .; MANICA, D. T. . Aplicativos de monitoramento do ciclo menstrual e da gravidez: corpo, gênero, saúde e tecnologias da informação. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 59, p. e205908, 2021. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8664511. Acesso em: 24 mar. 2021.

PALLETTA, Gabriela. Menstruapps na era farmacopornográfica: aplicativos de monitoramento de ciclo menstrual e interseções entre corpos, máquinas e tecnopolíticas de gênero. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2019.

ZUBOFF, Shoshana. “The Big Other: Capitalismo de Vigilância e perspectivas para uma civilização de informação”. In: BRUNO, Fernanda; CARDOSO, Bruno; KANASHIRO, Marta; GUILHON, Luciana; MELGAÇO, Lucas. Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018.