#Dobras 32 // O Cadastro Positivo e o ranking do homem endividado

21 de maio de 2019

Por Paula Cardoso*

É bem provável que você já tenha ouvido falar, principalmente nos últimos meses, do Cadastro Positivo. A Lei Complementar 166/2019 (BRASIL, 2019), que torna a adesão automática, foi sancionada sem vetos em abril deste ano e entrará em vigor a partir de 9 de julho. De modo simplificado, se trata de um banco de dados que reúne informações financeiras com histórico de crédito e pagamentos de pessoas físicas e jurídicas para avaliar o risco de oferta de crédito. Operando como um sistema de pontuação de crédito em que cada participante passa a ter uma nota (score), o Cadastro Positivo é anunciado como um contraponto aos chamados “cadastros negativos” (como Serasa e SPC) já que valorizaria os “bons pagadores”. O objetivo é que a pontuação meça e preveja, com base no histórico, “quão confiável” uma pessoa é para receber um empréstimo, um financiamento ou mesmo uma compra no cartão de crédito. Ou seja, qual a probabilidade de calote que ela oferece.

O instrumento, na verdade, já existe desde 2011 através da Lei 12.414/2011 (BRASIL, 2011), mas não deslanchou, diziam agentes do sistema financeiro, por conta do modelo de adesão com que operava até então. Ele dependia da aprovação prévia do interessado para constar na base de dados – o chamado “opt in”. Diante desse “problema informacional”, a solução encontrada foi inverter a lógica da adesão. O novo cadastro elimina o artigo 16 da lei supracitada e automatiza a adesão dos consumidores e empresas que, caso queiram sair, devem manifestar-se – o chamado “opt out” [1]. Assim, informações financeiras de todos os brasileiros adultos e economicamente ativos serão automaticamente incorporadas a esse banco de dados. Na prática, isso significa que aproximadamente 120 milhões de usuários farão parte, de partida, do novo Cadastro Positivo.

Como funcionará o Cadastro Positivo?

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) elaborou uma espécie de guia que esclarece os principais pontos passíveis de dúvidas sobre o Cadastro Positivo. Nele, pontuam que a nota dada a cada consumidor, que varia de 1 a 100, é “calculada  a partir das informações coletadas pelas empresas, com seus dados financeiros, sua renda, pagamento de contas de energia, água, telefone, entre outros” [2]. (IDEC, 2019)

O histórico e nota de cada consumidor serão gerados com base em dados como empréstimos tomados, datas sobre compras e financiamentos, prazos de pagamento, valor e quantidade das parcelas, pontualidade do pagamento e dados cadastrais. Além disso, segundo o material do Idec, informações sobre seus familiares, dependentes ou de primeiro grau (pais, mães, filhos e filhas), também podem ser utilizadas para classificar os consumidores como potenciais bons ou maus pagadores. Essas informações serão cedidas aos chamados birôs de créditos – que passam a ser atores cruciais nessa rede, como veremos adiante – por bancos, lojas de varejo e concessionárias de luz e telefone.

Nessa FAQ do Banco Central se detalha que as informações armazenadas devem ser “objetivas, claras, verdadeiras e de fácil compreensão” (BCB, 2019) Por outro lado, é vedado o uso de informações classificadas como excessivas – “assim consideradas aquelas que não estiverem vinculadas à análise de risco de crédito ao consumidor” ou sensíveis – “assim consideradas aquelas pertinentes à origem social e étnica, à saúde, à informação genética, à orientação sexual e às convicções políticas, religiosas e filosóficas”.

Implicações

Há várias implicações em jogo com a entrada em vigor do novo Cadastro Positivo, sobretudo relacionadas à proteção de dados pessoais, mas que não se esgotam aí. A Coalizão Direitos na Rede (2018) lançou uma carta aberta assinada por diversas organizações civis que alerta sobre os principais riscos [3]. Além do evidente ataque à proteção de dados pessoais e aos direitos do consumidor que significa a modificação da lei de sigilo bancário que possibilita o livre compartilhamento de informações e ampliação automática das bases de cadastro positivo sem o consentimento dos cidadãos, há outras nuances, talvez mais complexas.

Apesar do projeto proibir o uso do que chamam de “informações excessivas”, o texto não deixa claro o que seria isso. Na prática essa indefinição abre margem para que “as empresas de tecnologia e birôs de crédito coletem metadados (dados de utilização de aparelhos celulares e aplicativos) e dados publicados em redes sociais (Twitter, Facebook, Youtube) para composição de “avaliações de risco” dos cidadãos” (COALIZÃO DIREITOS NA REDE, 2018). Ou seja, é possível extrair indiretamente “informações sensíveis”, aquelas utilizadas para formação de perfis (profiling), a partir de dados implícitos. Essa dinâmica é justamente aquilo que Shoshana Zuboff (2019) identifica como a extração de excedente comportamental a partir de nosso dados – decorrentes da descoberta de que informações de perfil de usuário podem ser inferidas, presumidas ou deduzidas indiretamente – e que seria o foco de investimento privilegiado das lógicas e técnicas da vigilância contemporânea para a elaboração de produtos preditivos [4].

Outra implicação da definição do cadastro como aprovada reside na opacidade sobre o modo como o cálculo da nota realmente é feito. Não existe regra sobre a metodologia dos gestores do banco para calcular a nota já que “cada gestor de banco de dados possui autonomia para criar a sua própria metodologia de pontuação”. Ou seja, apesar de que “o gestor de banco de dados deve disponibilizar em seu sítio eletrônico, de forma clara, acessível e de fácil compreensão, a sua política de coleta e utilização de dados pessoais para fins de elaboração de análise de risco de crédito”, a metodologia em si – que na prática significa o algoritmo preditivo do risco de “calote” – permanecerá oculta.

Além disso, segundo a carta do Idec, o texto aprovado não apresenta nenhuma regra sobre incidentes de segurança e medidas preventivas que as empresas devem tomar no caso de vazamento de informações sensívei.

Em consonância com os problemas descritos acima, na análise que fazem dos sistemas de pontuação de crédito tomando como objeto o caso dos Estados Unidos, onde o primeiro sistema do tipo surgiu ainda nos anos 50, Citron & Pasquale (2014) apontam que os três problemas básicos desse tipo de sistema são: a opacidade, as avaliações arbitrárias e o impacto desigual sobre minorias. A aparente simplicidade dos sistemas como o Cadastro Positivo dá a ilusão de precisão e confiabilidade, mas, como é usual dos algoritmos, se tratam de caixas-pretas cujas regras de funcionamento dificilmente se tornam explícitas ou inteligíveis. Para Cath O’Neil, essas “armas de destruição matemática” (2017) – como qualifica os modelos matemáticos que guiam decisões cada vez mais automatizadas sobre a vida e o futuro – apenas agravam as desigualdades já existentes. Essa automatização, no entanto, não é homogênea já que para ela, cada vez mais, os “privilegiados são analisados por pessoas, e as massas, por máquinas” (MENÁRGUEZ, 2018).

O ranking do homem endividado

Deleuze, em seu já muito conhecido e revisitado Post-scriptum sobre as sociedades de controle diz que “[o] homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado”, fazendo menção às rupturas com a antecessora sociedade disciplinar (1992). Se naquele momento, início dos anos 90, dizia ele que o capitalismo havia mantido como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, “pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento”, hoje a inclusão do homem endividado no coração das políticas do capital não parece mais ser um empecilho. Justamente o contrário.

Maurizio Lazzarato em O governo do homem endividado (2017) identifica essa questão como central na mutação histórica dos aparelhos de captura e comando do neoliberalismo contemporâneo. Para ele, não é mais a relação capital/trabalho que está no centro da vida econômica, social e política, mas a relação credor/devedor. Essa inflexão histórica teria sua gênese na crise iniciada em 2007 a partir do colapso do mercado imobiliário americano e é intrinsecamente vinculada à transversalidade da financeirização e à produção de uma modalidade específica de subjetivação. Nesse contexto, a dívida seria a técnica mais adequada de produção do homo economicus neoliberal e a figura do homem endividado corresponderia à  produção subjetiva da crise e da dívida. Para Lazzarato, a dívida do capitalismo contemporâneo é impagável, não reembolsável e infinita (p. 84). A dívida, diz ele, é uma dívida de vida, não apenas financeira.

Independente da controvérsia econômica que possa haver sobre esse último ponto, nos interessa pensar como o novo Cadastro Positivo é sintomático da sociedade da dívida de que fala Lazzarato. Se a dívida agora é permanente, não faz mais sentido excluir aqueles que devem das dinâmicas consumidoras, lógica que regia os cadastros de tipo negativo como Serasa e SPC. Tampouco faz sentido, como ocorria nestes, que o cidadão-consumidor transite entre um “fora” e “dentro” desse mecanismo. Uma vez que os “bons” e “maus pagadores” habitam agora o mesmo banco de dados, todos em estado permanente de endividamento potencial, a classificação passa a ser a forma de incluir todos sem necessariamente solucionar antigos privilégios e discriminações. Ao contrário, provavelmente reforçando-os.

Nesse contexto, o ranking, como um artefato de classificação e avaliação algoritmicamente produzido, funciona como um dispositivo que simultaneamente agrega e segrega, que personaliza e generaliza, que individualiza e desindividualiza,

numa dinâmica de natureza aparentemente contraditória mas complementar que se relaciona com o que Lazzarato (2014) identifica, inspirado em Deleuze e Guattari, como o duplo investimento sobre a subjetividade que o capitalismo opera: a sujeição social e a servidão maquínica. Enquanto a sujeição social se relaciona com a formação de uma subjetividade individual, “ao nos atribuir uma identidade, um sexo, uma profissão, uma nacionalidade e assim por diante” (p.27), a servidão maquínica age sobre os níveis pré-pessoais e suprapessoais da subjetividade, “as quais, indo além do sujeito e de relações individuadas (intersubjetividade), multiplica ‘os possíveis’” (p.32) [5].

Se a sujeição invoca a consciência e a representação do sujeito, a servidão maquínica ativa muito mais e muito menos do que a consciência e a representação; em outras palavras, muito mais e muito menos do que a consciência e a representação. (ibid.)

Assim, poderíamos pensar a dívida e o ranking, sob a forma dos sistemas de pontuação de crédito como o novo Cadastro Positivo que entrará em vigor no Brasil,  enquanto dispositivos privilegiados para pensar os processos específicos de subjetivação produzidos a partir das novas intersecções entre as dinâmicas do neoliberalismo e suas dimensões maquínicas, sobretudo aquelas agenciadas por algoritmos e Big Data. Um indício de que as implicações, significados e possíveis desdobramentos desse tipo de sistemas sociotécnicos estão apenas começando é o fato de que o paradigmático caso do Crédito Social Chinês – sobre o qual, há que se pontuar, parece ser difícil estar seguro do que é realidade, promessa ou mito (MARR, 2019; KOBIE, 2019) – é originado e ordenado segundo os princípios de um ranking de crédito financeiro. Imaginar essa possibilidade (distópica, certamente) se trata menos de um prognóstico, aos moldes de uma predição algorítmica, do que de um indicativo sobre os “modos de existência” que vinculam capitalismo, vigilância e subjetivação nas sociedades contemporâneas.

Referências

BCB, Banco Central do Brasil. Perguntas frequentes: Cadastro Positivo. Abril de 2019. Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/perguntasfrequentes-respostas/faq_cadastropositivo>.

BRASIL. Lei complementar nº 166, de 8 de ABRIL de 2019.  Diário Oficial da União, Brasília, 9 de abril de 2019, Seção I, p.1. Disponível em <http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/70693213/do1-2019-04-09-lei-complementar-n-166-de-8-de-abril-de-2019-70693117>.

BRASIL. Lei nº 12.414, de 9 de junho de 2011. Diário Oficial da União, Brasília, 10 de junho de 2011, Seção I, p. 2. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12414.htm>.

BRUNO, Fernanda; BENTES, Anna; FALTAY, Paulo. Economia psíquica dos algoritmos: considerações iniciais. No prelo.

CITRON, Danielle Keats; PASQUALE, Frank. The scored society: Due process for automated predictions. Washington Law Review, v. 89, p. 1-33, 2014.

COALIZÃO DIREITOS NA REDE. Carta aberta sobre a reforma do cadastro positivo e proteção de dados pessoais. Brasília, 28 de março de 2018. Disponível em: <https://direitosnarede.org.br/p/reforma-do-cadastro-positivo-plp441/>

DELEUZE, Guilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle, in Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226.

IDEC, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Entenda como funciona o novo cadastro positivo. 22 de fevereiro de 2019. Disponível em: <https://idec.org.br/dicas-e-direitos/entenda-como-funciona-o-novo-cadastro-positivo>.

KOBIE, Nicole. The complicated truth about China’s social credit system. Wired, 21 de janeiro de 2019. Disponível em: <https://www.wired.co.uk/article/china-social-credit-system-explained>.

LAZZARATO, Maurizio. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo: Edições SESC; n-1 edições, 2014. 416 p.

________________. O Governo do Homem Endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017. 240 p.

MARR, Bernard. Chinese Social Credit Score: Utopian Big Data Bliss Or Black Mirror On Steroids? Forbes, 21 de janeiro de 2019. Disponível em: <https://www.forbes.com/sites/bernardmarr/2019/01/21/chinese-social-credit-score-utopian-big-data-bliss-or-black-mirror-on-steroids/#2c9e344e48b8>.

MENÁRGUEZ, Ana Torres. Os privilegiados são analisados por pessoas; as massas, por máquinas. El País, 21 de novembro de 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/12/tecnologia/1542018368_035000.html?%3Fid_externo_rsoc=FB_BR_CM&fbclid=IwAR03NTMI0fdZU_7AYDxuMlFNgx7JidrDw9VSncTVihgFmtNqvvwpDAh13fU>.

O’NEIL, Cathy. Weapons of math destruction: How big data increases inequality and threatens democracy. Broadway Books, 2017.ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future ate the New Frontier of Power. PublicAffairs: New York, 2019. 705 p.

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Notas

[1] Caso queira cancelar ou reativar seu cadastro, o consumidor deve fazer a solicitação a um dos gestores por meio telefônico, físico e eletrônico. Seu pedido deverá ser atendimento no prazo de até 2 dias úteis.

[2] Quanto mais perto de 1, “menos confiável” a pessoa é considerada para uma oferta de crédito. Inversamente, quanto mais próximo de 1000, maior a sua chance de ser considerado um bom pagador”.

[3] O Procon de São Paulo também lançou uma nota de alerta sobre o assunto. Ver: http://www.procon.sp.gov.br/noticia.asp?id=5550

[4] O último texto da Anna Bentes aqui no blog aborda com mais detalhes essa dinâmica. https://medialabufrj.net/blog/2019/05/dobras-30-meus-algoritmos-acham-que-estou-gravida-notas-sobre-predicao-e-influencia-de-comportamento-online/

[5] Bruno, Bentes e Faltay (no prelo) também abordam essa dupla escalada de produção de subjetividades.

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Paula Cardoso é doutoranda em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pesquisadora do MediaLab.