#Dobras 36 // A vigilância no mundo contemporâneo: tecnologia, controle e subjetividade
8 de julho de 2019
Por Anna Bentes*
Como as tecnologias digitais estão transformando nossas vidas?
Em um mundo onde passamos cada vez mais tempo conectados, não há dúvidas de que a inserção de tecnologias nas veias e artérias de nossas sociedades tem produzido incontáveis efeitos na cultura, na economia, na política e na subjetividade. Entre esses efeitos, destaca-se a capacidade de vigiar e registrar as ações de indivíduos e populações de uma forma sem precedentes na história humana.
Pensar as práticas de vigilância envolve, historicamente, a articulação entre três elementos centrais: observação, conhecimento e intervenção (BRUNO, 2013). Segundo as análises do filósofo Michel Foucault (2010), o advento da vigilância como instrumento de poder é localizado no seio do desenvolvimento das instituições disciplinares no fim do século XVIII e ao longo do século XIX. Ao identificar no Panóptico, dispositivo óptico-arquitetônico de Jeremy Bentham, o modelo ideal de funcionamento das sociedades modernas, Foucault percebe na assimetria de olhares – na qual poucos veem muitos – uma ferramenta de poder importante na produção de corpos e subjetividades disciplinados.
Nessa composição arquitetônica, aqueles distribuídos pela construção em anel periférico nunca têm certeza se estão sendo vistos por aqueles na torre central. Assim, os vigiados são induzidos a um estado consciente e permanente de visibilidade, tornando o poder ao mesmo tempo visível e inverificável, o que assegura seu funcionamento automático e desindividualizado. Nesta forma centralizada e hierárquica, a vigilância panóptica orquestra um jogo de sombra e luz no qual as técnicas de ver induzem a efeitos de poder, que visam, sobretudo, a disciplina e a normalização dos corpos. A partir desta distribuição espaço-temporal específica, o Panóptico se constitui enquanto “uma máquina de dissociar o par ver e ser visto” (Foucault, 2010, p. 191).
Porém, hoje, a vigilância assume uma forma majoritariamente distribuída (Bruno, 2013), funcionando cada vez menos de forma centralizada e hierárquica. Entender as práticas de vigilância contemporâneas enquanto fenômeno distribuído significa designar processos reticulares, espraiados e diversificados, plenos de ambiguidade, que não obedecem a nenhum princípio unificado. Embora estejamos acompanhando nas últimas duas décadas uma penetração exponencial das tecnologias de vigilância no cotidiano, “as mudanças mais importantes se passam não tanto na intensidade da vigilância, mas no seu modo de funcionamento, que se encontra em muitos aspectos bastante distanciado do modelo panóptico” (Bruno, 2013, p. 25).
Esse modo difuso e polivalente de operação dos sistemas de vigilância ganhou especial visibilidade a partir das revelações de Edward Snowden sobre o modo de atuação das agências de inteligência como a National Security Agency (NSA) em 2013. Segundo David Lyon (2015a), apesar da enorme importância dessas revelações, alguns elementos dessas práticas já eram conhecidos no campo dos estudos sobre vigilância. No entanto, indubitavelmente, Snowden apresentou evidências e detalhes como as práticas de vigilância por instituições governamentais são alimentadas pela troca de informações com empresas privadas, sobretudo, os gigantes da tecnologia como Google, Facebook e outras que coletam constantemente dados sobre seus usuários e suas ações (Lyon, 2015b).
Nessas revelações, Snowden mostrou, portanto, como os sistemas de vigilância estão muito além de procedimentos de segurança, mas envolvem diferentes práticas, tecnologias de informação e comunicação, empresas, funções e propósitos de setores públicos e privados. Além disso, a grande repercussão internacional sobre o episódio sugere que a maior parte dos cidadãos não estava ciente das dimensões dos modos de operar da vigilância contemporânea.
Distribuída e integrada em tecnologias de comunicação e serviços online, a vigilância cumpre funções estratégicas para as formas de capitalização de diferentes tipos de empresa cujos modelos de negócio se estruturam em torno da extração de valor a partir de dados. Considerados hoje o “petróleo da era digital”, os dados são elementos fundamentais para a nova lógica de acumulação do capitalismo de vigilância (Zuboff, 2019). Nessa atual dinâmica capitalista, a experiência humana é tomada como matéria-prima para se extrair valor a partir dos dados e de técnicas de inteligência de máquina. O imenso volume de dados que compõem hoje a escala do big data alimenta diferentes processos de inteligência artificial que buscam tornar visíveis, inteligíveis, operacionalizáveis e comercializáveis todas essas informações.
É, portanto, por meio do conhecimento produzido a partir desses dados e desses processos automatizados que se elaboram diferentes estratégias para conduzir nosso comportamento: desde nos fazer clicar em um link, assistir um vídeo, visualizar um conteúdo, enviar uma mensagem, fazer um cadastro, comprar um produto, contratar um serviço ou, até mesmo, influenciar o nosso voto. Desse modo, a arquitetura da internet e da economia digital vem criando novas formas de controle nas sociedades contemporâneas.
Em especial, as redes sociais, hoje, tornam-se espaços privilegiados para observar e conhecer o comportamento individual e coletivo. Plataformas por onde os usuários não apenas compartilham publicamente informações íntimas de forma voluntária, mas também por onde trocam informações sensíveis uns com os outros de forma relativamente privada. Além de toda a visibilidade dos usuários aos olhos de grandes empresas a partir de seus sistemas automatizados de monitoramento de dados, de práticas de vigilância em massa por parte dos Estados, usuários produzem e consomem uma enorme quantidade de imagens e informações cotidianamente nos ambientes virtuais. Tornam visíveis aspectos de seu cotidiano e de sua intimidade assim como passam a conhecer e acompanhar múltiplos aspectos da vida alheia, conferindo novos sentidos às práticas de vigilância. Inscrita nesses circuitos de entretenimento, o olhar vigilante tem suas hierarquias desestabilizadas, tornando-se uma prática prazerosa e instrumento do exercício de controle nas relações com o outro, por exemplo, as conhecidas formas de fuxicar e stalkear a vida alheia.
As formas de espetacularização de si assim como as diversas modalidades da vigilância nas sociedades contemporâneas apontam para um deslocamento histórico em relação ao eixo em torno do qual as subjetividades se edificam (Sibilia, 2016). Empurrando o eixo do interior para o exterior, reconfiguram-se as fronteiras entre público e privado bem como os espaços da intimidade que produzem personalidades menos introdirigidas do que alterdirigidas (Riesman, 1971). Assim, para os modos de vida conectados e visíveis do século XXI, ver e ser visto ganham “sentidos atrelados à reputação, pertencimento, admiração, desejo, conferindo à visibilidade uma conotação primordialmente positiva, desejável” (Bruno, 2013, p. 47).
Distribuídas por inúmeros espaços, funções, dispositivos e aspectos de nossas vidas, as práticas de vigilância se diluem e se confundem com outros processos, passando a circular pelas veias de uma nova lógica econômica e social por onde a visibilidade e o saber extraído dela são ferramentas estruturais ao seu modo de funcionamento. Como efeito de um mundo ininterruptamente conectado, portanto, temos uma organização do visível específica que transforma formas de exercício de poder e controle, mas também nossas relações sociais e subjetivas.
//
ANDREJEVIC, Mark. The discipline of watching: detection, risk, and lateral surveillance. Critical Studies in Media Communication. Vol 23, No 5, p.391-407, 2006.
BAUMAN, Zygmunt. Vigilância líquida: diálogos com David Lyon. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. 1a Edição. Porto Alegre, RS: Sulina, 2013.
CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto: 2012.
______________. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Contraponto, 1997.
DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversações. Tradução de Peter Pàl Pelbart. 2a Edição. São Paulo, SP: Ed. 34, 2010.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal, 1979.
____________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 38a edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
LYON, David. 11 de setembro, sinóptico e escopofilia: observando e sendo observado. In: BRUNO, F.; KANASHIRO, M.; FIRMINO, R. Vigilância e visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010.
______________. As apostas de Snowden: desafios para o entendimento de vigilância hoje. Ciência e Cultura vol.68 no.1 São Paulo Jan./Mar, 2016.
_____________. Surveillance after Snowden. Cambrige: Polity Press, 2015.
RIESMAN, David. A multidão solitária. São Paulo, SP: Editora Perspectiva, 1971.
SIBILIA, Paula. O show do eu. Rio de janeiro, RJ: Contraponto, 2016.
ZUBOFF, Shoshana. Big other: surveillance capitalismo and the prospects of an information civilization. Jornal of information technology, 30, 75-89, 2015.
_____. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future ate the New Frontier of Power. PublicAffairs: New York, 2019.
//
*Pesquisadora do MediaLab.UFRJ, Anna Bentes é doutoranda em Comunicação e Cultura pela UFRJ.
Esse texto faz parte do projeto ECONOMIA PSÍQUICA DOS ALGORITMOS: RACIONALIDADE, SUBJETIVIDADE E CONDUTA EM PLATAFORMAS DIGITAIS, coordenado pela profª Fernanda Bruno, com a apoio do CNPq. A pesquisadora é bolsista da CAPES.