Dobras #45 // Máquinas paranoides e sujeitos influenciáveis
30 de abril de 2021Neste Dobras #45 o pesquisador Paulo Faltay apresenta sua tese de Doutorado, que tem como objeto privilegiado os autointitulados Targeted Individuals (TIs), ou Indivíduos-Alvo. Reunidos em sites, blogs e redes sociais digitais, os TIs partilham da crença de serem vítimas de manipulação e de controle mental por meio de aparelhos eletrônicos e tecnologias digitais. No texto, ele também divide conosco o percurso da sua pesquisa.
Por Paulo Faltay*
- Os áudios de zap e os Targeted Individuals
Algumas semanas após a OMS decretar a pandemia, tive uma conversa com um amigo na qual, lá pelas tantas, perguntei quando ele achava que o “normal” tinha acabado. Normal no sentido de uma certa previsibilidade que parecia, pro bem e pro mal, conduzir nossas vidas sociais e pessoais. Depois de algum debate, foi estabelecido como um marco comum o ano de 2016. Coincidência (ou não) também foi o ano que entrei no doutorado e que começa a pesquisa que deságua na tese agora tornada pública.
Voltando ao papo com o amigo, a conversa rapidamente se deslocou dos acontecimentos e processos políticos para o uso e as mediações de redes sociais. De alguma forma, os longos áudios de zap trocados reverberavam a inquietação que embasa a tese: a de que redes sociais e plataformas desempenham papel fundamental e central nesse eixo de instabilidade e insegurança política, subjetiva e epistêmica.
Constatávamos como, após o surgimento do coronavírus e dos modos pandêmicos de viver, tínhamos passado a estar envoltos cada vez mais em narrativas paranoides e conspiratórias. Mais especificamente, este amigo relembrava, com alguns risos angustiados, narrativas conspiratórias relacionadas à tecnologia como ferramentas de “ataque” e de dominação dos corpos e mentes. Ele fazia referência ao caráter absurdo e até certa inventividade de algumas imagems-memes que eu tinha enviado horas antes. Elas ilustravam os supostos potenciais nocivos à saúde do 5G, os danos físicos e psíquicos causados por ondas eletromagnéticas, e o controle da mente por meio do uso de máscaras e da implantação de chips no corpo humano via vacinas (ver imagens abaixo).
Imagens coletadas em canais dos TIs
As imagens que surpreenderam o meu amigo, entretanto, me eram variações de um repertório já bastante próximo: elas foram coletadas de canais do grupo autointitulado Targeted Individuals (TIs), ou Indivíduos-Alvo, objeto da minha tese. Reunidos em sites, páginas de redes sociais, fóruns, blogs e canais de vídeos em, os TIs partilham da crença de serem vítimas de manipulação e de controle mental por meio de aparelhos eletrônicos e tecnologias digitais. Nestes espaços que povoam, relatam experiências, sofrimentos e angústias por serem vítimas de diversas práticas, que podem ser divididas brevemente em duas modalidades: o gangstalking, perseguições e monitoramentos sistemáticos promovidos por grupos organizados, e a manipulação e o controle mental por meio de aparelhos eletrônicos e tecnologias digitais.
Imagens coletadas em canais dos TIs
Na definição própria em um site dedicado ao grupo, o significado de ser um TI é eloquente: “você é um experimento”. Um TI é, segundo o site, “alguém que foi selecionado pelo Deep State (geralmente FBI, DHS ou CIA) para participar involuntariamente de um programa experimental de tortura do governo”. Ainda segundo a descrição, o projeto que utiliza os TIs como cobaias humanas foi desenvolvido no âmbito do MK-Ultra e tem como objetivo colapsar e “neutralizar” a pessoa, utilizando de procedimentos que causariam estresse psicológico, físico e emocional. A pretensão final seria o controle de toda a população por meio de intimidação e ameaças e da manipulação e domínio da mente.
Por mais que a tentação de rapidamente taxarenvelopar os TIs enquanto paranoicos ou esquizofrênicos fosse grande, tal interpretação acabaria por reduzir e subestimar o fenômeno. Neste sentido, segui a preciosa dica de Henrique Parra no exame de qualificação de tratá-los como “antenas de antecipação”. Como manifestações de “tecnoparanoia” (Jameson, 1991), me chamou atenção um aspecto contraditório das produções do grupo: elas operam tanto oferecendo uma função explicativa dos problemas psíquicos na autoinvenção de uma identidade coletiva, como também reforçam e legitimam aspectos delirantes. Ainda mais contraditório – e intrigante – é o fato deles utilizarem da tecnologia para relatar os temores sobre as ameaças representadas pela tecnologia.
Ainda que grande parte das angústias dos TIs estejam relacionadas ao vocabulário e ao imaginário tecnológico do contexto da Guerra Fria, as revelações de Edward Snowden alimentaram e ofereceram ampla legitimação para seus temores. Dito de outra forma, chega a ser irônico que utilizem da criação de comunidades online para contestar agentes governamentais, corporativos e tecnocientíficos que desenvolveram, implementaram e regulam a internet. Em outras palavras, as ferramentas que os permitem se constituir enquanto coletividade são justamente aquelas que podem efetivamente concretizar parte de seus medos.
Embora os perigos dos efeitos devassantes e nocivos que ferramentas de monitoramento onipresentes em serviços e dispositivos que utilizamos cotidianamente esteja progressivamente se tornando uma preocupação espraiada, para os TIs as tecnologias não apenas os espia ou rastreia, mas os atacam. Parte dessa angústia, portanto, me parece fundamentar-se na concepção da técnica enquanto um elemento apartado do humano, uma artificialização ameaçadora da nossa existência e autonomia. Pablo Rodriguez (2007, p. 12), no prólogo de El modo de existencia de los objetos técnicos, livro de Gilbert Simondon, aponta uma característica particular dos humanos: “fazem com que a matéria prolifere no mundo através da criação de objetos e sistemas técnicos que são acoplados ou incompatíveis a eles, criando fantasias de libertação ou subjugação que depende da tonalidade afetiva do tempo”.
- Paranoia e algoritmos
Retorno à conversa do zap. O amigo não sabia em detalhes do que se tratava a tese, o que ele sabia era que eu pesquisava algoritmo. E neste papo me perguntava: mas e o algoritmo? Era uma recorrência não só nas conversas com ele, conforme as pessoas descobriam o que eu investigava à época do início da pesquisa – vigilância algorítmica -, sempre viam me relatar algum episódio cotidiano delas que girava em torno da figura do “algoritmo”. Eram casos como “estava cantarolando GIRASSOL de Alceu Valença perto do celular e depois apareceu um anúncio de jardinagem no Instagram” ou “flertei com uma pessoa numa festa de aniversário de um amigo, não peguei o contato dela, mas no dia seguinte ela estava na sugestão de amigos do Facebook“. Achava engraçado porque estas pessoas me perguntavam como e porque isso acontecia: isso é o algoritmo?.
Progressivamente e, em especial nas eleições de 2018, começou a surgir um segundo grupo de pessoas que, quando eu conversava sobre a tese, passavam a me explicar sobre meu tema de pesquisa. Na base dessas explicações estava as repercussões do caso Cambridge Analytica. Era, então, comum eu escutar “não, porque o Steve Bannon isso“; “mas a guerra híbrida e as psyops aquilo“, etc.
De toda forma, uma pista surgiu: entre o espantar-se e a dúvida e o habituar-se e as certezas, um sentimento persecutório difuso parecia cada vez mais fornecer explicações e pautar a experiência das pessoas com a tecnologia e a vida midiática online. No centro desse sentimento estava a figura do ALGORITMO. Ora como um ente quase com vida própria, ora como uma poderosa ferramenta na mão de agentes igualmente poderosos.
Paranoia, assim, surgia como um importante tropo de elaboração de sentido diante dos opacos meandros algorítmicos que passaram a mediar cada vez mais nossas vidas. Não lembro ao certo, talvez por atuação dos algoritmos também, mas foi nessa época que uma matéria do New York Times me apresentou aos TIs e que defini a produção deles como objeto de pesquisa. Ao retirar o léxico particular peculiar dos TIs – expressões como “voz intracraniana v2k”, “armas de energia direcionadas”, “teatro de rua”, “telepatia sintética” – muito do que é discutido nas publicações deles poderia ser encontrado em conversas, matérias, artigos acadêmicos e produtos culturais que versam sobre temáticas e preocupações atuais envolvendo usos e aplicações tecnológicas. Como, por exemplo, “roubam todos os nossos dados pessoais”, “perdemos a privacidade”, “todo e qualquer movimento está sendo monitorado”. Neste aspecto, apesar de certa equivalência discursiva, o “exagero” dos TIs me auxiliou a perceber como a tecnologia pode ser entendida como um elemento de alteridade radical do humano.
Um problema se apresentou de saída nesta ligação entre processos psíquicos e contextos políticos, técnicos e culturais. Um tropeço possível era, na ênfase ao caráter patológico da paranoia, tomar um dos dois campos, psíquico e social, como causa ou consequência do outro. A aproximação com o entendimento de paranoia, em especial na psicanálise, se deu no percurso da pesquisa menos em uma revisão ou discussão sobre o conceito em si ou sobre a estrutura clínica, mas destacando o aspecto da paranoia como um conjunto de práticas e lógicas interpretativas que elaboram e organizam as relações materiais e simbólicas (Sedgwick, 2013, p. 130).
Ainda, tomo a paranoia como um modo de construção e estruturação do eu e de sua coerência, bem como uma percepção de cunho defensivo que em contextos de instabilidade, procura driblar sentimentos de desagregação e fragmentação experimentados por condições estruturais ou contingentes. O tratamento da paranoia ao longo da tese, portanto, se encaminha para ser menos um diagnóstico e mais uma orientação, como nas palavras de Freud, ao perceber, “a partir dos exageros e distorções do patológico, o que é aparentemente simples no normal” (1914/2010, p.17).
- Enfim, a tese
Um dos primeiros aspectos sobre o qual me debrucei na pesquisa foi o repertório anacrônico dos TIs. Seguindo uma das muitas lições aprendidas com a orientação de Fernanda, fui me perguntar “quando é que não foi assim?” e observar processos de ruptura e de continuidade nos fenômenos, no caso a relação entre elaborações paranoides e a técnica/tecnologia. Para um recuo que me permitiu tratar a paranoia não como um diagnóstico e mais uma orientação de um conjunto de práticas e lógicas interpretativas, me ancorei no ensaio “Da gênese do “aparelho de influenciar” no curso da esquizofrenia” de Victor Tausk. Do ensaio, me chamou especial atenção uma passagem em que Tausk cita, en passant, ilustrações de pacientes sobre máquinas fantásticas que seriam a fonte de seus sofrimentos. Ele não se detém sobre isso, mas despertou em mim o interesse em pesquisar, especialmente porque o gesto de produzir imagens e de dar a ver as ferramentas fantásticas é uma forte recorrência na produção dos TIs.
Recupero algumas ilustrações, sem saber se eram elas as quais o Tausk se referia, para, neste recuo aos casos de paranoia da modernidade, aguçar o olhar da percepção de atenuação do poder e da autoridade simbólicos que se materializavam em máquinas fantásticas. Estes casos mostravam que esta percepção pode ser vivenciada não apenas no que seria da ordem do colapso das organizações e instituições sociais, mas também no que é caracterizado como a singularidade dos sujeitos, seu corpo, sua psique, sua personalidade e sua consciência.
Este olhar me permitiu também sistematizar a produção dos TIs. Neste sentido, após uma observação exploratória, se impôs o desafio de organizar a produção de conteúdo do grupo em um esquema estruturado e classificatório. Para tanto, o YouTube se mostrou o espaço privilegiado para realizar uma imersão na produção do grupo por alguns motivos. São eles: a centralidade que o serviço de compartilhamento de vídeos alcançou como ferramenta de circulação de conteúdo e de influência na opinião pública; na produção do próprio grupo dos TIs que se deslocou de sites e blogs para plataformas algoritmicamente mediadas; o fato dele ter se tornado um grande celeiro de divulgação, veiculação e compartilhamento de narrativas de tons paranoides e conspiratorios; e, por fim, ser um espaço para a divulgação de representações visuais. Com o auxílio fundamental de Francisco Kerche, foram identificados 491 canais, que foram a base da análise e para a produção de visualizações.
A tese discute, assim, como a crescente proliferação de narrativas paranoides e conspiratórias, como as do TIs, se deve não apenas às impossibilidades cada vez maiores de distinção entre verdade e mentira, e ao caos e à insegurança informacional advindos de disputas epistemológicas e políticas no debate público. É fruto também dos investimentos das empresas de tecnologia em técnicas e procedimentos de produção de conhecimento sobre indivíduos e populações de modo a influenciar, gerir e intervir no comportamento. Dito de outra forma, quando efetivamente há uma série de elementos e agentes heterogêneos que anseiam por conduzir e modular os modos de subjetivação e sociabilidade a partir de dados, algoritmos e redes sociais digitais.
Os modos de percepção e subjetivação paranoide são, assim, relacionados à emergência da figura do sujeito influenciável, noção que tomo de empréstimo de Marres (2018), como elemento crucial aos modos de socialização e subjetivação das redes algorítmicas das plataformas. Por sujeito influenciável, eu considero o entendimento de que é possível tornar os indivíduos e suas condutas objetos de intervenção a partir do conhecimento produzido pela identificação, classificação e cálculo automatizados de dados digitais pessoais e relacionais. A tese pretende mostrar que a noção de influenciabilidade dos sujeitos, tornados objetos de intervenções a partir do comportamento online monitorado, articula modos de percepção paranoides sobre as relações de poder, os regimes de saber e os modos de ser em redes algorítmicas.
Tratam-se de dimensões relacionadas, respectivamente, com o conspiracionismo; com a crença na eficácia tecnocientífica e nos conhecimentos produzidos a partir de dados digitais – tanto de quem produz estas estrategias de intervenção quanto de quem é potencialmente o alvo delas; e com os modos de subjetivação e de constituição de si ante a promessa de personalização dos sistemas automatizados de recomendação e direcionamento de conteúdo.
- O convite
Termino voltando à conversa que abre o texto. Se o conteúdo das imagens compartilhadas com o amigo não me surpreendia, me assustou ver que após a pandemia, no jargão das redes, a “bolha” do qual os TIs fazem parte estourou. No Reino Unido, torres de 5G foram incendiadas. Na Nigéria, após um proeminente líder religioso ter defendido, na televisão, a relação entre a tecnologia de conexão e a doença, o governo do país teve que emitir um comunicado oficial para refutar a hipótese. Pesquisa realizada pelo Yahoo News/YouGov apontou que 44% dos republicanos nos Estados Unidos acreditam que Gates planeja usar uma campanha de vacinação em massa contra a Covid-19 para monitorar bilhões de pessoas. No Brasil, tornou-se padrão usar termômetros digitais no punho das pessoas após a ampla disseminação que ‘raios emitidos pelo termômetro’ atacavam a glândula pineal e/ou teriam efeitos nocivos à saúde ao serem apontados para a testa das pessoas.
No cenário contemporâneo, a quantidade de informações online disponível pode potencialmente justificar quase qualquer teoria da conspiração, crença marginalizada ou experiências individuais inusitadas. Embaralham, assim, as definições do que seriam crenças ilusórias particulares. Qualquer pessoa pode encontrar muitas evidências e indícios que justifiquem suas interpretações e percepções, independentemente da validade e das fontes que as embasam.
Neste sentido, os TIs me parecem comunicar que os modos de sociabilidade e subjetividade constituídos no encontro com algoritmos e dados, ferramentas cada vez mais cotidianas – e ainda assim, extraordinárias – estão apenas no começo. Divulgo agora publicamente, no site do MediaLab, a tese como um convite para se pensar e construir contornos e ferramentas coletivas de convivência.
*Paulo Faltay é Doutor em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ, pesquisador do MediaLab e da Lavits.