Radio-Comum

3 de novembro de 2013

Junho de 2013, Brasil como pensar um acontecimento?

E de repente tudo parecia sem muita importância diante do que acontecia nas ruas no último mês de junho no Brasil. Assim como em uma paixão, uma tragédia ou uma revolução, o cotidiano que até então nos ocupava se tornara irrelevante. As milhares de pessoas nas ruas nos colocavam diante de algo que nos parecia ao mesmo tempo certo e excessivo. Era certo que acontecia algo de grande intensidade e diante do que era impossível ficar inerte. Mas a certeza deste acontecimento excedia nossas expectativas: ninguém o esperava ou o planejava, assim como ninguém podia prever ou coordenar o que viria adiante. Excedia nossas representações: ele não cabia precisamente em nenhuma imagem, autor, idéia ou conceito. Excedia nossas capacidades de mensurá-lo: “amanhã vai ser maior”, diziam as ruas. Excedia, ainda, nossas ferramentas intelectuais.

Diante de um acontecimento, nos perguntávamos como pensá-lo.

1 – O que é, afinal, um acontecimento? Pergunta necessária para que encontremos as pistas sobre como pensá-lo. Digamos que um acontecimento é um entrecruzamento inesperado de uma variedade de processos. Esses processos econômicos, históricos, culturais e subjetivos, em um determinado momento, motivados por elementos mínimos, produzem uma faísca que opera como um grande desvio em cada um deles. “Atenção, a menor linha de fuga pode fazer explodir tudo” (Guattari). O acontecimento seria assim uma fagulha desviante, um shifter que não propõe ainda uma nova ordem.

2 – Se o acontecimento é deflagrado por pequenos colapsos – um vendedor morto na Tunísia, a retirada de algumas árvores de um parque na Turquia, uma passeata contra o aumento da passagem de ônibus no Brasil – ele não é, entretanto, fruto do puro acaso, como tal tentativa de definição poderia fazer supor. É verdade que um acontecimento pode se dar ou não, mas, se acontecimento há, suas condições de possibilidade estão presentes. Elas só podem ser traçadas após o acontecimento, nunca antes, mas isso não diminui em nada a imanência do acontecimento ao que o torna possível.

3 – Tais condições de possibilidade não são homogêneas, pelo contrário. Por vezes o acontecimento é justamente fruto de uma desacordo entre processos (Lazzarato). Enquanto os processo econômicos apontam em uma determinada direção – elitização dos espaços urbanos, redução das formas de circulação na cidade – os processos subjetivos podem maquinar agenciamentos que não cabem dentro desta história que se escreve. O acontecimento assim é desencadeado por um choque entre processos que, depois dele buscarão, e aí reside o ponto de bifurcação fundamental, novos acoplamentos, maquinações.

4 – Pois ainda que possamos traçar, só depois, as condições de possibilidade de um acontecimento, ele as ultrapassa, criando um novo campo de possíveis (Deleuze). Movimentos de insubordinação coletiva em todo o país tornam intolerável o que parecíamos acostumados a aceitar indefinidamente. Novas frentes de ação e novas formas de subjetividade que até há pouco pareciam tão improváveis se impõem com extrema urgência, contundência e inventividade. A partir de então, nos perguntávamos como estar à altura do acontecimento, como dar continuidade às descontinuidades fabricadas por ele. Como pensá-lo de modo a continuar a multiplicidade de processos disparados e ao mesmo tempo estar atentos às diversas batalhas que o atravessam – batalhas sociais, políticas, existenciais, subjetivas, estéticas.

5 – Ainda sem as ferramentas necessárias para pensar o acontecimento, mas sabendo que ele está ligado a uma multiplicidade de processos, nosso gesto, para pensá-lo, não pode portanto ser apenas histórico, no sentido de desenhar uma cronologia pautada por causas e efeitos. Era preciso entrar nas múltiplas linhas que durante o mês de junho pareciam suspensas, em espera, buscando formas de continuar os processos depois do desequilíbrio causado pelo acontecimento; assim estavam os intelectuais, as mídias, os poderes estatais, as forças do capital, os poetas.

6 – Nos pareceu que uma rádio poderia reverberar as múltiplas falas em curso e ao mesmo tempo fazê-las durar, nos ajudando a pensar e agir no que se passa. Falas que já estavam aí, que mudaram de curso ou que surgiram desde então. Pois a ruptura engendrada pelo acontecimento faz proliferar a palavra. E como falamos e seguimos falando desde então! Nas ruas, nas assembléias, nas aulas, nos ônibus, nas padarias, na fila de banco, na praia, nas redes sociais, não conseguíamos não falar e também precisávamos ouvir, ouvir, ouvir.

7 – Uma rádio que nos permitisse habitar coletivamente os processos deflagrados desde então na cidade, na ação política, na vida social e intelectual, nos meios de comunicação, nas subjetividades, nos afetos. E a rádio talvez nos permita estar mais próximos de línguas e práticas plurais, menores, desarmônicas; desta língua comum cuja competência coletiva vai sendo construída no caminho, na ausência de ferramentas dadas. Rádio Comum.

Fernanda Bruno e Cezar Migliorin Rio de Janeiro, agosto de 2013