Cidades, tecnopolíticas e vigilâncias

10 de dezembro de 2015

Adriano Belisário, dezembro/2015

2016 será um ano chave para o futuro das cidades. Em outubro, Quito sediará a Habitat III, conferência da ONU sobre moradia e desenvolvimento urbano sustentável, que consolidará a chamada ‘Nova Agenda Urbana’, documento com recomendações e princípios para guiar políticas públicas para cidades até 2030. Também em 2016, na África do Sul, acontece o Congresso Internacional de Geologia, que – entre outros temas – irá deliberar sobre a oficialização do antropoceno como era geológica, devido ao impacto das ações humanas na natureza. Apesar de ocuparem cerca de 3% da área terrestre, mais metade da população vive em cidades, que concentram também os maiores índices de consumo de energia e emissão de poluentes do planeta. Na medida em que os resultados desastrosos da relação humana predatória e poluente com a natureza tornam-se cada vez mais evidentes, o futuro das cidades pode significar também o futuro da sobrevivência de nosso próprio habitat na Terra.

Com o mote ‘A Cidade Que Precisamos’ (The City We Need), o Urban Thinkers Campus (UTC) é uma iniciativa da ONU com parceiros locais para ampliar o debate sobre a ‘Nova Agenda Urbana’, ainda muito restrito a especialistas, governos e certas empresas, apesar de sua importância. No Brasil, o Urban Thinkers Campus foi realizado pelo INCITI – núcleo de pesquisa transdisciplinar da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) que articula pesquisas, projetos e experimentações em inovação para cidades e tecnologias livres. Com o tema de ‘Tecnologias Abertas e Juventude’, o UTC Recife consistiu em uma série de ações ao longo de novembro que culminaram em um encontro internacional, entre 24 e 27 daquele mês.

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Parte do UTC Recife, o Urban Jam consistiu na ocupação da Rua Domingos José Martins durante todo o encontro, com debates, protestos, apresentações musicais, instalações artísticas e outras atividades, envolvendo os participantes e moradores da rua e da cidade.

Neste contexto, o Medialab/UFRJ e a rede LAVITS colaboraram ativamente nas discussões sobre cidade e tecnologia, tanto nas atividades prévias, como no próprio evento. Durante o segundo Urban Jam, debate preparatório para o UTC Recife, fiz a mediação do debate “Vigilância, Tecnopolíticas & Territórios”, que contou com a presença de Izabela Domingues (Consumix) e Paulo Faltay Filho (UFRJ), além da participação assíncrona e à distância de outros pesquisadores do LAVITS, responsáveis pelas provocações iniciais. A partir de uma videoconferência de quase 2 horas sobre o mesmo tema, realizada com Rodrigo Firmino (UCL – London’s Global University), Lucas Melgaço (Vrije Universiteit Brussel) e Rafael Evangelista (UNICAMP), editei o vídeo abaixo compilando algumas reflexões, em especial sobre a centralidade do conceito de “cidades inteligentes” (smart cities) nos debates sobre tecnopolíticas e territórios.

Veja a video-conferência na íntegra aqui

O vídeo foi exibido também no primeiro dia do UTC Recife, na sessão sobre ‘Cidades Inteligentes e Ativismo Tecnosocial’, onde mediei o diálogo entre Camilo Cantor (Colaboratorio/Equador), Gabi Agustini (Olabi) e Liduína Lins (Ciclocidade). Tanto no breve vídeo, como nos longos debates sobre tecnopolíticas e cidades, tornou-se evidente que – ressignificações a parte – as “cidades inteligentes”apresentam-se em geral como soluções vendida por grandes corporações para o Estado, a fim de aprimorar tecnologias proprietárias de vigilância e monitoramento da cidade que produzem dados e justificam decisões, igualmente fechadas e inacessíveis ao cidadão. Opacidade para o Estado, transparência para a sociedade. Não raro a metáfora da cidade como organismo é acompanhada de dispositivos de comando e controle centralizados e verticalizados (top-down). A cidade que eles precisam é justo uma cidade com precisão, controlável, como uma navegação cibernética que deve ser precisa e exata, sem margem de erros.

 

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Mestre Chico no encerramento do UTC Recife

No entanto, sabemos, a vida nas cidades é imprecisa e inexata. As práticas e relações cotidianas com o território não podem ser totalmente controladas e dão luz a diversas iniciativas de urbanismo emergente, que parecem expressar uma outra inteligência, distribuída e também profundamente relacionada com a tecnologia. Porém, tratam-se aqui de tecnologias livres e abertas, que não se restringem à apropriação da alta tecnologia da informação, englobando também saberes tradicionais e tecnologias elaboradas “de baixo para cima” que vão da habitação ao consumo de energia, passando pela saúde, permacultura e outros temas. Não raro estas práticas cotidianas operam por meio do desvio daqueles mecanismos de controle do Estado e das corporações. Adaptando a máxima de William Gibson, poderíamos dizer que a rua encontra seus próprios usos não só para as coisas, como também para a cidade.

Indo além das recomendações oficiais para a Cúpula de Chefe de Estados, o UTC Recife representou uma aposta na cópula da juventude com as diversas tecnologias livres como catalisadora de processos de transformação social. Com protagonismo da sociedade civil nos debates e ocupações realizadas, o encontro apontou rumos importantes para a construção da cidade que necessitamos. Parte dos debates realizados no encontro já está disponível em vídeo no canal do INCITI. E o documento final com as recomendações será disponiblizado para consulta e discussão pública online ainda em dezembro de 2015, no site do UTC Recife.