#Dobras 6 // A razão humanitária das monstruosidades: a tomada científica da política criminal

8 de junho de 2018

Fotografia do Inquérito Policial de Febrônio Índio do Brasil, publicada em 09 de Setembro de 1927 pela Gazeta de Notícias, anexada em 20 de Fevereiro de 1929 à primeira página do Exame Médico-Psicológico do acusado realizado por Heitor Carrilho, então diretor do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro.

 

Por Mateus Bayer

 

Na década de 1920, vemos por parte de um conjunto de advogados brasileiros, a discussão daquilo que chamaram de uma “nova Política Criminal [que] apoia-se no exame scientifico das causas da criminalidade – a criminologia – afim de que a pena possa ser adequada na luta contra o delicto” *(Gazeta de Notícias, 19 de Outubro de 1924). Trata-se da apresentação de prescrições de caráter humanitário que desde logo se estabelece como uma crítica à aplicação “cega” da lei. Esta nova política criminal, então, propõe substituir o “direito penal estático” pelo chamado “direito penal dinâmico”. O primeiro diz respeito aos princípios jurídico-penais que determinam as prescrições em função dos códigos e das leis obrigatórias aplicadas por forças coativas. Trata-se de um direito fundado em “bases imutáveis”, “metafísicas” e desligadas das circunstâncias a que se aplica. A nova política criminal, por outro lado, seria constituída por um conjunto de doutrinas articuladas à realidade e funcionaria por um mecanismo diametralmente oposto: da filosofia à ciência, da coação à prevenção, das bases imutáveis à individualização e adequação das penas.

É este, afinal de contas, o chamado “direito penal dinâmico”, tal como foi conceituado por aquele que “talvez, dentre os criminalistas vivos, de raça latina, [seja] o mais bem provido de acquisições acerca das idéas em marcha, dos projetos em andamento e das realizações legaes” (Correio da Manhã, 17 de Outubro de 1928). A passagem se refere a Luis Jimenez de Asúa, que em conferência ao Instituto dos Advogados do Rio de Janeiro assim descrevia as “bases cardeais do código penal futuro”:

[Trata-se de instaurar] o estado perigoso, sem necessidade de figuras de delito; a medida tutelar em vez da pena castigo; os médicos sociais em lugar de magistrados peritos em direito; os reformatórios e instituições educadoras e asilos manicômio como substitutivos das velhas prisões e um processo sumario de terrebilidade que bem poderá suceder o Código. (O Globo, 17 de Agosto de 1927)

Fato é que no mesmo dia da divulgação deste trecho, em 17 de Agosto de 1927, justamente ao lado dele no mesmo jornal vemos as chamativas letras da manchete: “O CRIME HEDIONDO DA ILHA DO RIBEIRO – Um rapaz, depois de maltratado foi estrangulado”.

Ora, quis a história que esses dois caminhos, ligados até então apenas pela espacialidade material da folha dos boletins diários, viessem a se cruzar de forma inexorável poucos dias depois justamente nos autos de defesa daquele que seria então considerado o autor de tal crime bárbaro. Trata-se de Febrônio Índio do Brasil, que a partir de agora surge como uma vida que carregará consigo até a sua morte as marcas de uma disputa política da qual sequer escolheu participar. Esta relação, contudo, não é apenas especulativa, pois o próprio advogado que ficara responsável por sua defesa alega que nada mais fez do que pôr “em prática o que pregou Jimenez Asúa” (Processo Crime 4.739/47, p. 220). Eis a tese principal da defesa:

Se não fosse a necessidade de provar, em poucas linhas resumiria este ensaio incolor: Quer criminoso, quer não criminoso, Febrônio Índio do Brasil é, positivamente, um louco. Não pode ser pronunciado e, ainda menos, condenado. Se a sociedade julga-o perigoso, que se o interne num manicômio, numa penitenciário nunca. (Letácio Jansen, advogado de defesa. Processo Crime 4.739/47, p. 338, grifo do autor)

Febrônio foi destinado, assim, ao Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro – instituição de caráter até então inédito no Brasil que é elogiada por Jimenez Asúa na ocasião de sua visita ao local guiada por Heitor Carrilho, diretor do manicômio e responsável pelo exame médico-picológico que decreta o destino de Febrônio. Mais do que isso: o deslocamento da matéria penal do crime para loucura do criminoso o condenará à segregação “ad vitam para os efeitos salutares e elevados da defesa social em estabelecimento apropriado a psycopathas delinquentes” (Heitor Carrilho. Processo Crime 4.739/47, p.406-7). Desse modo, a ciência médico-psiquiátrica se torna ator importante na inauguração de uma dimensão sentencial até então sem precedentes no sistema penal. É justamente esta, aliás, a crítica do Ministério Público enviada ao juiz responsável pelo caso: “A internação ad vitam é providência que o direito penal brasileiro desconhece” (Processo Crime 4.739/47, p. 418).

Preso em 1927 no Rio de Janeiro sob a acusação de estupro e homicídio de dois menores, Febrônio foi destinado a um enclausuramento manicomial que somou, ao fim de sua vida, praticamente o dobro dos trinta anos de prisão que delimitavam a pena máxima na lei “cega” do criticado código penal (Fry, 1982). Na quarta-feira dia 29 de Agosto de 1984 o Jornal do Brasil publica breve nota sobre sua morte com os dizeres: “Febrônio foi condenado à morte em vida. Preso mais antigo do país morre aos 89 anos depois de viver 57 no manicômio”.

A esta altura não nos parece estranha a afirmação de que a tomada científica das práticas penais, ao contrário do que propunham muitos de seus defensores, não proporcionou um abrandamento dos modos punitivos, visto que seu efeito foi propriamente o oposto. Frente aqueles que se mostravam inassimiláveis às táticas “humanitárias” de controle estabelecidas, impuseram-se punições de dimensões até então inimagináveis. Mas não se trata aí de algo que se busque a todo custo extinguir… muito pelo contrário! Se os “criminosos monstruosos” puderam ocupar tanto as manchetes dos jornais é porque se tornaram o “fetiche” do poder. A cada novo escândalo o poder criminal pode exercer plenamente o seu teatro: mostrar-se ainda insuficiente e requerer cada vez mais força, mais comando, cada vez mais campos de intervenção… Não há dúvidas: na história do poder de punitivo, o hediondo se tornou uma grande oportunidade!

*Nas citações de documentos históricos, foram mantidas as normas ortográficas da época.

 

REFERÊNCIAS:

ASÚA, J. L. Principios de Derecho Penal: La ley y el delito. Editorial Sudamericana: Buenos Aires, Argentina, 1945.

FRY, P. Apresentação. In: CARRARA, S. Crime e loucura: O aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: Eduerj, 1998.

________. Direito positivo versus direito clássico: a psicologização do crime no Brasil no pensamento de Heitor Carrilho. In: Cultura da Psicanálise, Sérvulo Figueira (Org.), Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985.

________. Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei. In: Caminhos Cruzados. São Paulo: Brasiliense, 1982.

O CRIME HEDIONDO DA ILHA DO RIBEIRO – Um rapaz, depois de maltratado foi estrangulado. In: O Globo, 17 de Agosto de 1927.

O PROJECTO FONTENELLE. In: Correio da Manhã, 17 de Outubro de 1928.

POLITICA CRIMINAL: A liberdade condicional. In: Gazeta de Notícias, 19 de Outubro de 1924.

POLÍTICA CRIMINAL: O Curso do Professor Asúa e a Conferência de Hoje. In: O Globo, 17 de Agosto de 1927.

Processo Criminal de Febrônio Índio do Brasil – Processo Crime 4.739/47.

UM CRIME HEDIONDO NA ILHA DO RIBEIRO: Um jovem operário, atraído para uma mata, foi ali estrangulado com um pedaço de cipó. In: Correio da Manhã, 17 de Agosto de 1927.