#Dobras 6 // A razão humanitária das monstruosidades: a tomada científica da política criminal
8 de junho de 2018
Por Mateus Bayer
Na década de 1920, vemos por parte de um conjunto de advogados brasileiros, a discussão daquilo que chamaram de uma “nova Política Criminal [que] apoia-se no exame scientifico das causas da criminalidade – a criminologia – afim de que a pena possa ser adequada na luta contra o delicto” *(Gazeta de Notícias, 19 de Outubro de 1924). Trata-se da apresentação de prescrições de caráter humanitário que desde logo se estabelece como uma crítica à aplicação “cega” da lei. Esta nova política criminal, então, propõe substituir o “direito penal estático” pelo chamado “direito penal dinâmico”. O primeiro diz respeito aos princípios jurídico-penais que determinam as prescrições em função dos códigos e das leis obrigatórias aplicadas por forças coativas. Trata-se de um direito fundado em “bases imutáveis”, “metafísicas” e desligadas das circunstâncias a que se aplica. A nova política criminal, por outro lado, seria constituída por um conjunto de doutrinas articuladas à realidade e funcionaria por um mecanismo diametralmente oposto: da filosofia à ciência, da coação à prevenção, das bases imutáveis à individualização e adequação das penas.
É este, afinal de contas, o chamado “direito penal dinâmico”, tal como foi conceituado por aquele que “talvez, dentre os criminalistas vivos, de raça latina, [seja] o mais bem provido de acquisições acerca das idéas em marcha, dos projetos em andamento e das realizações legaes” (Correio da Manhã, 17 de Outubro de 1928). A passagem se refere a Luis Jimenez de Asúa, que em conferência ao Instituto dos Advogados do Rio de Janeiro assim descrevia as “bases cardeais do código penal futuro”:
[Trata-se de instaurar] o estado perigoso, sem necessidade de figuras de delito; a medida tutelar em vez da pena castigo; os médicos sociais em lugar de magistrados peritos em direito; os reformatórios e instituições educadoras e asilos manicômio como substitutivos das velhas prisões e um processo sumario de terrebilidade que bem poderá suceder o Código. (O Globo, 17 de Agosto de 1927)
Fato é que no mesmo dia da divulgação deste trecho, em 17 de Agosto de 1927, justamente ao lado dele no mesmo jornal vemos as chamativas letras da manchete: “O CRIME HEDIONDO DA ILHA DO RIBEIRO – Um rapaz, depois de maltratado foi estrangulado”.
Ora, quis a história que esses dois caminhos, ligados até então apenas pela espacialidade material da folha dos boletins diários, viessem a se cruzar de forma inexorável poucos dias depois justamente nos autos de defesa daquele que seria então considerado o autor de tal crime bárbaro. Trata-se de Febrônio Índio do Brasil, que a partir de agora surge como uma vida que carregará consigo até a sua morte as marcas de uma disputa política da qual sequer escolheu participar. Esta relação, contudo, não é apenas especulativa, pois o próprio advogado que ficara responsável por sua defesa alega que nada mais fez do que pôr “em prática o que pregou Jimenez Asúa” (Processo Crime 4.739/47, p. 220). Eis a tese principal da defesa:
Se não fosse a necessidade de provar, em poucas linhas resumiria este ensaio incolor: Quer criminoso, quer não criminoso, Febrônio Índio do Brasil é, positivamente, um louco. Não pode ser pronunciado e, ainda menos, condenado. Se a sociedade julga-o perigoso, que se o interne num manicômio, numa penitenciário nunca. (Letácio Jansen, advogado de defesa. Processo Crime 4.739/47, p. 338, grifo do autor)
Febrônio foi destinado, assim, ao Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro – instituição de caráter até então inédito no Brasil que é elogiada por Jimenez Asúa na ocasião de sua visita ao local guiada por Heitor Carrilho, diretor do manicômio e responsável pelo exame médico-picológico que decreta o destino de Febrônio. Mais do que isso: o deslocamento da matéria penal do crime para loucura do criminoso o condenará à segregação “ad vitam para os efeitos salutares e elevados da defesa social em estabelecimento apropriado a psycopathas delinquentes” (Heitor Carrilho. Processo Crime 4.739/47, p.406-7). Desse modo, a ciência médico-psiquiátrica se torna ator importante na inauguração de uma dimensão sentencial até então sem precedentes no sistema penal. É justamente esta, aliás, a crítica do Ministério Público enviada ao juiz responsável pelo caso: “A internação ad vitam é providência que o direito penal brasileiro desconhece” (Processo Crime 4.739/47, p. 418).
Preso em 1927 no Rio de Janeiro sob a acusação de estupro e homicídio de dois menores, Febrônio foi destinado a um enclausuramento manicomial que somou, ao fim de sua vida, praticamente o dobro dos trinta anos de prisão que delimitavam a pena máxima na lei “cega” do criticado código penal (Fry, 1982). Na quarta-feira dia 29 de Agosto de 1984 o Jornal do Brasil publica breve nota sobre sua morte com os dizeres: “Febrônio foi condenado à morte em vida. Preso mais antigo do país morre aos 89 anos depois de viver 57 no manicômio”.
A esta altura não nos parece estranha a afirmação de que a tomada científica das práticas penais, ao contrário do que propunham muitos de seus defensores, não proporcionou um abrandamento dos modos punitivos, visto que seu efeito foi propriamente o oposto. Frente aqueles que se mostravam inassimiláveis às táticas “humanitárias” de controle estabelecidas, impuseram-se punições de dimensões até então inimagináveis. Mas não se trata aí de algo que se busque a todo custo extinguir… muito pelo contrário! Se os “criminosos monstruosos” puderam ocupar tanto as manchetes dos jornais é porque se tornaram o “fetiche” do poder. A cada novo escândalo o poder criminal pode exercer plenamente o seu teatro: mostrar-se ainda insuficiente e requerer cada vez mais força, mais comando, cada vez mais campos de intervenção… Não há dúvidas: na história do poder de punitivo, o hediondo se tornou uma grande oportunidade!
*Nas citações de documentos históricos, foram mantidas as normas ortográficas da época.
REFERÊNCIAS:
ASÚA, J. L. Principios de Derecho Penal: La ley y el delito. Editorial Sudamericana: Buenos Aires, Argentina, 1945.
FRY, P. Apresentação. In: CARRARA, S. Crime e loucura: O aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: Eduerj, 1998.
________. Direito positivo versus direito clássico: a psicologização do crime no Brasil no pensamento de Heitor Carrilho. In: Cultura da Psicanálise, Sérvulo Figueira (Org.), Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985.
________. Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei. In: Caminhos Cruzados. São Paulo: Brasiliense, 1982.
O CRIME HEDIONDO DA ILHA DO RIBEIRO – Um rapaz, depois de maltratado foi estrangulado. In: O Globo, 17 de Agosto de 1927.
O PROJECTO FONTENELLE. In: Correio da Manhã, 17 de Outubro de 1928.
POLITICA CRIMINAL: A liberdade condicional. In: Gazeta de Notícias, 19 de Outubro de 1924.
POLÍTICA CRIMINAL: O Curso do Professor Asúa e a Conferência de Hoje. In: O Globo, 17 de Agosto de 1927.
Processo Criminal de Febrônio Índio do Brasil – Processo Crime 4.739/47.
UM CRIME HEDIONDO NA ILHA DO RIBEIRO: Um jovem operário, atraído para uma mata, foi ali estrangulado com um pedaço de cipó. In: Correio da Manhã, 17 de Agosto de 1927.