#Dobras 14 // Paranoia e tecnologia: as ilustrações de James Tilly Matthews e Jakob Mohr

10 de agosto de 2018

Por Paulo Faltay

Você falou que gostaria de viajar pra uma praia em um chat no Whats e, em poucas horas, apareceu uma oferta imperdível de uma agência de viagens no Instagram. Você ficou de flerte com uma pessoa em uma festa na casa de uma amiga e, no outro dia, nem precisou stalkear porque, de pronto, lá estava ela no “pessoas que você talvez conheça” do Facebook. Com quem isso nunca aconteceu? Coincidência ou monitoramento? Paranoia ou capitalismo da vigilância (Zuboff, 2015)?

Conforme o sentimento persecutório e a percepção da influência de agentes maquínicos em nossos cotidianos permeiam cada vez mais nossa experiência com as redes sociotécnicas, é interessante observar que as relações entre paranoia e tecnologia são bem mais antigas que a internet e a economia de dados e de plataforma. Em 1810, John Haslam, funcionário do hospital psiquiátrico londrino Bethlem, lança Illustrations of Madness, considerado o primeiro registro documentado de um paciente individual com sintomas do que posteriormente seria diagnosticado esquizofrenia paranoide. O livro relata o delírio de James Tilly Matthews, um galês comerciante de chá com trânsito entre agentes políticos do Reino Unido e da França no período de tensão entre os dois Estados durante as Guerras Napoleônicas. Matthews acreditava que sua mente era controlada por um grupo de espiões revolucionários franceses através de uma máquina secreta descrita como um tear de ar (air loom).

Operada de acordo com procedimentos mecânicos, magnéticos e químicos recém-desenvolvidos durante o período da Revolução Industrial, o tear de ar, ilustrado por Matthews com riqueza de detalhes, incorporava alavancas, barris, baterias, frascos de metal e fluído magnético, dirigindo e modulando magneticamente correntes de ar para transmitir, à distância, pensamentos, emoções e sensações ao cérebro (Jay, 2003).

Air Loom, ilustração de James Tilly Matthews

 

Detalhes do painel – Air Loom

Outra ilustração celebre do delírio de influência pelas máquinas data de um século depois. Parte do acervo da Coleção Prinzhorn, Provas (Beweisse, 1909), de Jakob Mohr, um fazendeiro e vendedor ambulante diagnosticado com esquizofrenia paranoide, retrata o funcionamento de uma engenhoca parecida com uma antiga câmera fotográfica. O operador do aparelho, que Mohr acreditava ser seu psiquiatra, possuía também uma espécie de fone de ouvido, utilizado para escutar os pensamentos do fazendeiro e  controlá-lo e como um escravo hipnótico a partir de radiação magnética e ondas elétricas. Este controle é representado pelas setas e tentáculos ondulados que emanam do dispositivo e unem os dois homens.

Provas (Beweisse, 1909), de Jakob Mohr. Prinzhorn Collection.

Contemporâneo a Mohr, Victor Tausk sistematiza alguns dos sintomas associados ao delírio de influência por aparelhos técnicos e cunha o termo máquinas de influenciar, em Da gênese do ‘aparelho de influenciar’ no curso da esquizofrenia (1919/1992). O psicanalista se referia a uma “máquina de natureza mística” presente em relatos de pessoas diagnosticadas com esquizofrenia paranoide. Destinadas a perseguir estas pessoas e operadas por supostos inimigos, as máquinas de influenciar possuem, segundo Tausk (p.186), cinco efeitos principais:

1) fazer o paciente ver imagens, em um único plano, em paredes ou nos vidros de janelas, se assemelhando, assim, à lanterna mágica ou ao cinematógrafo;

2) produzir e roubar pensamentos e sentimentos por meio de ondas ou raios de forças misteriosas, que os pacientes não são capazes de explicar ao certo. Ainda que o funcionamento não seja relatado, ele se daria através da transmissão e da “drenagem” de pensamentos e sentimentos dos pacientes pelos perseguidores, de modo a tal máquina poder ser nomeada de aparelho de sugestão;

3) produzir ações motoras no corpo, ereções e ejaculações com o intuito de privar o paciente de sua potência masculina e, assim, enfraquecê-lo, por meio de sugestão, correntes de ar, eletricidade, magnetismo ou raios-x;

4) produzir sensações incapazes de serem descritas pelos pacientes, mas percebidas como correntes de ar, elétrica ou magnética;

5) ser responsável por outras ocorrências nos corpos dos pacientes, como erupções cutâneas, abcessos e outros processos patológicos.

Voltando ao cenário tecnológico contemporâneo, não é muito forçado relacionar uma máquina que projeta imagens, em um único plano, com os atuais dispositivos móveis, como tablets e telefones celulares. Assim como o aparelho de sugestão serve como um paralelo para a maneira como redes sociais e plataformas como Facebook, Youtube, Netflix, Spotify e Amazon utilizam ferramentas como o data mining e profiling, em uma cultura da recomendação (van Dijck e Poell, 2013). Tais mecanismos são utilizados para a coleta do maior número possível de dados pessoais visando a elaboração automatizada de perfis de pessoas usuárias, seja para ofertar informações e conteúdos personalizados que deduzem ser do interesse de quem utiliza estas plataformas – de modo a incitá-los a manter-se conectados, em uma economia da atenção, seja como possibilidade para o uso de estratégias comerciais e políticas de persuasão direcionadas e segmentadas a partir de características específicas – psicológicas, demográficas, de consumo ou de preferências ideológicas e estéticas, etc, no que estamos chamando de economia psíquica dos algortimos.

Com efeito, em 2002, o artista britânico Rod Dickinson materializou a fantasia de Matthews em uma instalação cuja última exibição ocorreu justamente no Bethlem Museum of The Mind e pode ser vista aqui. Diante da redefinição dos parâmetros entre paranoia e tecnologia posteriores às revelações de Edward Snowden e de fatos como nossos telefones estarem efetivamente  “nos escutando” ou o monitoramento do Facebook se estender até mesmo a conteúdos que você digita e não publica,  me interessa apontar as aproximações entre os considerados delírios e a estrutura tecnológica de cada época. Não apenas para indicar possível literalização e generalização da paranoia enquanto referência na relação entre humanos e tecnologia, mas para examinar o deslocamento dos regimes de produção de subjetividade, focando especialmente em seu vínculo com a técnica.

Nos séculos 19 e 20, a tecnologia surgia como uma problemática da paranoia por tensionar os seus rígidos limites entre interioridade e exterioridade e a fantasia de integridade do eu e do sujeito psicológico. Já em nosso presente conectado, no qual o espaço privilegiado da produção de subjetividade não se encontra mais nos recônditos da intimidade, mas na performatividade da extimidade (Sibilia, 2015; 2016) em plataformas e redes sociais, há efetivamente uma série de elementos e agentes heterogêneos que anseiam conduzir e condicionar os modos de subjetivação e sociabilidade a partir de dados, algoritmos e programas. A questão que se impõe, assim: quais negociações e alianças podemos estabelecer nas redes sociotécnicas para afastar o risco de nos sentirmos controlados, desorientados e paranoicos?

Esse texto é parte do capítulo 1 da tese “Algoritmos da paranoia: agência, subjetividade e controle”. Para uma apresentação geral da pesquisa ver #Dobras3.

 

Referências 

CHUN, Wendy Hui Kyong. Control and Freedom: Power and Paranoia in the Age of Fiber Optics. Cambridge, MA: MIT Press, 2008.

JAY, Mike, The air loom gang: the strange and true story of James Tilly Matthews and his visionary madness, London and New York, Bantam Press, 2003

SIBILIA, Paula. Autenticidade e performance: a construção de si como personagem visível. Revista Fronteiras – estudos midiáticos. 17(3): 353-364, setembro/dezembro, 2015a.

____________. O show do eu. Rio de janeiro, RJ: Contraponto, 2016.

SRNICEK, Nick. Platform Capitalism. Malden: Polity Press, 2017

TAUSK, Victor. On the Origin of the “Influencing Machine”. In: Schizophrenia. Journal of Psychotherapy Practice and Research, v. 1, n. 2, Spring 1992.

ZUBOFF, Shoshana. Big other: surveillance capitalismo and the prospects of an information civilization. Jornal of information technology, 30, 75-89, 2015.