#Dobras 37 // O Instagram se preocupa mesmo com a nossa saúde mental?
12 de setembro de 2019Por Natássia Rocha e Helena Strecker*
Nos últimos meses o Instagram tomou uma uma medida que chamou bastante a atenção do público: a retirada da visualização dos likes. Com o discurso de querer deixar o ambiente menos tóxico e competitivo, a plataforma está repensando o papel das curtidas, o que ressoou na mídia e no público como uma tentativa de tornar a nossa experiência no aplicativo mais positiva. Mas será que a mudança realmente diz respeito a nossa saúde mental?
Na primeira linha das diretrizes da comunidade, a equipe afirma querer que o app seja “um lugar autêntico e seguro para inspiração e expressão”. Entretanto, ao longo dos anos a plataforma se tornou um local com fotos cuidadosamente pensadas, editadas e planejadas — palco de vidas “perfeitas” — o que vem sendo apontado como gatilho para sensações de angústia e ansiedade.
Não planejamos demonizar o papel que a plataforma exerce no nosso dia a dia (nós mesmas reconhecemos que estamos completamente inseridas nisso), e nem responder à questão colocada no título, mas fornecer aqui algumas pistas e reflexões a respeito da relação entre a retirada da visualização dos likes e saúde mental. Nesse sentido, o que nos chamou mais a atenção foram afirmações de que a retirada dessa ferramenta traria uma melhora na saúde mental dos usuários, que passariam a estabelecer uma relação mais positiva e menos nociva com a rede social. Como estudantes de psicologia, não pudemos deixar de ficar com um pé atrás ao nos deparar com falas como essas.
A correlação entre uso de plataformas digitais e questões de ansiedade, estresse e depressão não parece espantar ninguém. Além de ser algo constantemente relatado pelos usuários, nos últimos anos uma série de estudos passaram a ser feitos avaliando o impacto das redes sociais e outras tecnologias na saúde mental dos usuários. Um dos que provocou mais repercussão foi a pesquisa publicada em 2017 pela Royal Society for Public Health¹, instituição de saúde pública do Reino Unido, que dentre outras coisas (como falar do caráter viciante desses dispositivos) avalia o Instagram como uma das plataformas mais prejudiciais. Segundo o artigo, o aplicativo colabora para os sintomas relatados acima, o que não somente valida o que é exposto pelas pessoas usuárias mas traz uma nova dimensão para o problema, que precisa agora ser enfrentado pelos próprios desenvolvedores.
Antes de tudo, vale ressaltar alguns pontos. Primeiro, a medida é um teste, inclusive foi dessa forma que a plataforma anunciou a mudança quando iniciou esse processo no Canadá, em abril. A partir de julho, os testes se expandiram para mais seis países, o que gerou muita discussão aqui no Brasil (que além de ter sido um dos países afetados, é um dos maiores mercados do aplicativo), mas é importante destacar que a retirada ainda não pode ser vista como algo definitivo.
Segundo, falar em retirada da visualização dos likes é importante para destacar que o botão de curtida não deixou de estar presente na plataforma, o que aconteceu é que foi ocultada a exibição do número de likes nas fotos de outros perfis. Ou seja, além de ainda poder curtir os posts alheios, o usuário continua recebendo notificações e pode visualizar as curtidas das suas próprias fotos. Assim, uma das coisas que queremos apontar aqui é a complicação ao falar em “fim dos likes”, como muitos se referiram ao noticiar a medida.
Num cenário de produção de estudos científicos sobre o uso das tecnologias e em que ganham cada vez mais força movimentos como o “detox digital”, de pessoas que decidem repensar o uso ou abandonar de vez as redes sociais, não nos surpreende que o tipo de relação que os usuários estabelecem com seus serviços passa a ser uma preocupação para as plataformas, e movimentos anteriores exemplificam essa virada.
Em agosto de 2018, o Facebook e Instagram introduziram uma ferramenta que contabiliza e até mesmo limita o tempo de uso dos aplicativos, mas que não obteve nem de longe a mesma repercussão. Em maio de 2019 o Instagram lançou uma campanha em parceria com a American Foundation for Suicide Prevention (AFSP) estimulando pessoas a compartilharem suas experiências e dificuldades com saúde mental². Antes de aplaudir tais atitudes, queremos evidenciar como são medidas contextualizadas, que não necessariamente conflitam com seus modelos de negócios.
O público do Instagram é muito heterogêneo, composto desde pessoas comuns até famosos, criadores de conteúdo (os chamados influencers) e empreendedores que usam a rede como ferramenta comercial. Dentre eles, as reações à novidade foram calorosas e das mais diversas, dividindo opiniões e gerando especulações.
Os mais otimistas afirmaram, entre outras coisas, acreditarem que a retirada diminuirá o caráter competitivo da plataforma. Assim, ficariam mais confortáveis para testar em suas postagens o que funciona ou não — seja para fins pessoais ou comerciais — sem a preocupação de manter um conteúdo com visível baixo número de likes. Também acham que não irá interferir no que se refere ao engajamento, uma vez que os algoritmos que controlam a ordem das aparições no feed se mantêm, e até onde se sabe continuam utilizando as curtidas como métrica.
Já quanto aos mais críticos ou céticos, no lado dos criadores de conteúdo há receio de que a medida será, sim, prejudicial ao engajamento (alguns já relatam sua diminuição). Dentre os usuários comuns, alguns não acreditam que a mudança fará muita diferença e outros alegam que simplesmente gostam de ter essa informação, protestando contra o controle que o Instagram está exercendo na forma como experienciam a plataforma, entre outras reclamações.
Além disso, há quem diga que com o desenvolvimento da inteligência artificial o próprio modelo de likes vem se tornando obsoleto. Outros dados (como visualizações, seguidores, comentários, compartilhamentos por direct, quantidade de vezes que uma postagem é salva, visitas ao perfil) e o próprio fato de ser possível “comprar likes” fizeram com que a curtida deixasse de ser relevante para medir engajamento, popularidade e organizar os conteúdos.
Essa profusão de conjecturas sobre os possíveis efeitos da medida é, de certa forma, reflexo da própria forma como o Instagram a empregou, uma vez que a própria empresa atribuiu caráter experimental à mudança. Apesar de terem enunciado que a intenção é diminuir a pressão nos usuários e a competitividade, e de todo o hype em torno da saúde mental que em seguida se deu, nada indica que a empresa tenha uma noção bem embasada sobre sua potencial efetividade. A forma como os efeitos serão avaliados permanece uma incógnita, tanto no que se refere à mudança de relação do usuário com a rede quanto no retorno que isso terá para os desenvolvedores — inclusive, claro, os financeiros. Além disso, tampouco fica claro se e como essas análises retornarão ao público.
Seja como for, todo esse modus operandi é sem dúvida mais uma evidência do caráter laboratorial a que as plataformas sujeitam seus usuários, com a ligeira exceção de que pelo menos dessa vez fomos avisados de alguma forma que estaríamos participando de um experimento: um experimento que não se sabe os termos, do qual não se pode optar por não participar (a não ser abandonando a plataforma) e cujo eventual retorno não está necessariamente garantido.
Enquanto usuárias, a medida não nos pareceu muito efetiva. Em termos de sensações negativas associadas ao uso do app, o vício por si só nos parece suficientemente danoso (que é associado em pesquisas ao mecanismo de recompensa acionado pelos likes que nós recebemos, o que ainda está presente). Além disso, o efeito de comparação também nos parece muito mais ligado à constante exposição a vidas filtradas do que à quantidade de curtidas que estas postagens têm, que muitas vezes até passam despercebidas. Embora essa seja uma perspectiva completamente subjetiva — e de pessoas com diferentes perfis de uso — não são percepções infundadas; ao contrário, encontraram apoio e nos levaram a evidenciar o que consideramos como algumas contradições na repercussão da medida.
Ao pesquisar sobre saúde mental e redes sociais, seja em debates informais ou em estudos, algumas características são destacadas no que tange a essa relação³: estratégias semelhantes às utilizadas em cassinos para levar ao vício; problemas de sono; efeito de comparação derivando na sensação de que todos estão aproveitando a vida melhor do que você; medo de estar perdendo algo (Fear of Missing Out – FoMO). Associados ao próprio formato de conteúdos do Instagram ou ao sentimento de recompensa dos likes, não aparece nenhuma relação clara entre a exibição destes últimos e os pontos mais evidenciados como nocivos.
Consideramos no mínimo curioso que, no entanto, a ocultação das curtidas alheias tenha sido tão associada a benefícios para a saúde mental, ainda que não tenha mexido nessas questões. Também achamos um tanto questionável que a recente mudança seja compulsória, ao passo que a prévia implementação da ferramenta de automonitoramento do tempo de uso seja optativa e, na nossa perspectiva, pouco difundida (em nosso círculo, poucos a conhecem). Explicando melhor: partindo do pressuposto de que o Instagram pretenda expandir a ocultação dos likes caso os retornos sejam positivos, tornando-a definitiva e não optativa, por que a implantação do gerenciamento do tempo, que encontra maior ressonância na relação com a saúde mental (inclusive recomendada pela pesquisa da RSPH) não se deu da mesma forma?
Portanto, ainda que concordemos que ela possa em certo nível ser benéfica para diminuir a pressão de busca pela popularidade (e que redes sociais podem influenciar questões psicológicas), fica a suspeita da existência de razões comerciais atreladas a essa mudança, e de que o discurso de preocupação com o bem-estar das pessoas cai como uma luva para otimizar a imagem da empresa. Faria sentido o Instagram tomar uma medida que contradiz seu modelo de negócios ou será que a ocultação dos likes é benéfica para a empresa? Como será que ela impacta o funcionamento da plataforma?
Em um contexto de mercado que dados adquirem cada vez mais valor econômico, por um lado a retirada da visualização dos likes abriria mercado para comercialização dessas informações. Por outro, há especulações de que os dados de curtida não sejam mais tão importantes devido a outras métricas de engajamento e novas funcionalidades presentes na plataforma. Desse modo, não há como fornecer uma resposta precisa quanto ao que mobilizou a retirada de likes, mas tudo indica há mais por trás do que foi alegado pela empresa. Toda decisão produz impactos tanto do ponto de vista dos usuários quanto dos desenvolvedores. Colocando na balança, quem será que ganha mais com a medida?
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Notas
[1] https://www.rsph.org.uk/about-us/news/instagram-ranked-worst-for-young-people-s-mental-health.html
[2] https://afsp.org/american-foundation-for-suicide-prevention-and-instagram-launch-mental-health-campaign-realconvo/
[3] Alguns links úteis: http://sitn.hms.harvard.edu/flash/2018/dopamine-smartphones-battle-time/; https://bluevisionbraskem.com/desenvolvimento-humano/como-o-uso-de-redes-sociais-impacta-nossa-saude-mental/; https://www.economist.com/graphic-detail/2018/05/18/how-heavy-use-of-social-media-is-linked-to-mental-illness
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*Pesquisadoras do MediaLab.UFRJ, Natássia Rocha e Helena Strecker são graduandas em Psicologia pela UFRJ.
*Esse texto faz parte do projeto ECONOMIA PSÍQUICA DOS ALGORITMOS: RACIONALIDADE, SUBJETIVIDADE E CONDUTA EM PLATAFORMAS DIGITAIS, coordenado pela profª Fernanda Bruno, com a apoio do CNPq.