#FAIL | Achille Mbembe e a reterritorialização de laços comunitários
7 de agosto de 2021
Por Henry Fragel*
O evento #FAIL | Tecnologia e política: pensar e fazer mundos a partir de suas falhas e ruínas contará com o filósofo camaronês Achille Mbembe na mesa de abertura, dia 27 de setembro; Mbembe é autor das obras Políticas da Inimizade – da qual se destaca o ensaio Necropolítica –, Crítica da Razão Negra e, a mais recente, Brutalisme, ainda sem tradução para a língua portuguesa. Seu trabalho denuncia a falha do projeto moderno de subjetividade humanista e do modo de produção capitalista imperial-colonialista em promover “liberdade, igualdade e fraternidade” em detrimento de uma gestão empresarial dos recursos naturais e culturais.
“Tem emergido uma forma inédita da vida psíquica apoiada na memória artificial e numérica e em modelos cognitivos provindos da neurociência e da neuroeconomia. Não sendo os automatismos psíquicos e os tecnológicos mais do que duas faces da mesma moeda, vai-se instalando a ficção de um novo ser humano, ‘empresário de si mesmo’, plástico e convocado a reconfigurar-se permanentemente em função dos artefatos que a época oferece.” (Crítica da Razão Negra, p. 14)
Grande parte da população global vive sob estados de emergência ilegais que protegem regimes econômicos de alta concentração do capital. Tecnologias de extração de dados são utilizadas para otimizar a perseguição e encarceramento dos corpos e a serialização da morte, cujas condições de aceitabilidade do “fazer morrer” são delineadas pelo racismo, e o uso das tecnologias coloniais de extermínio é reconfigurado sobre a classe trabalhadora. São processos que impõem o devir-negro ao mundo, a disseminação mundial do estado brutal em que se encontram os países depredados pela condição pós-colonial, pela divisão internacional do trabalho que assegura sua dependência, situação que Mbembe percebe inicialmente no continente africano e, posteriormente, em demais periferias do Ocidente.
O autor ainda descreve situações que refletem o andamento desse processo – formas de falhas atuais ou potenciais que atuam sobre nossos cotidianos e corpos. A escassez ou a má gestão de recursos ambientais tem efeitos destrutivos para o ecossistema, assim como a integração de substâncias inorgânicas aos circuitos de funcionamento do corpo humano – corpos-objeto – impactam de forma inesperada nas vidas individuais e no futuro da espécie. A concorrência entre governos, empresas e milícias pela hegemonia em meio a estados de sítio se alterna entre a proposta de imposição de um estado policialesco ou de uma automatização de sistemas de dados públicos, bancários, escolares, hospitalares e prisionais, de modo que todas as informações disponíveis sejam processadas por códigos privatizados sob a aparência de neutralidade.
“Ora, se o Estado securitário concebe a identidade e o movimento dos indivíduos (isto é, dos seus cidadãos) como fontes de perigo e de risco, a generalização do uso de dados biométricos como fonte de identificação e de automatização do reconhecimento facial terá como objetivo constituir uma nova espécie de população com predisposição para o distanciamento e o enclausuramento.” (Crítica da Razão Negra, p. 50)
No prefácio de Brutalisme, Mbembe compara a arquitetura à política, uma vez que ambas colocam em movimento forças materiais de demolição e construção em prol da organização e distribuição espacial de conjuntos vivos. Segundo o autor, a tensão entre material e intangível presente nesses processos é o que permite que o termo ‘brutalismo’ seja apropriado, do campo arquitetônico, como uma definição política.
A economia política do brutalismo tem por tarefa a transformação do sujeito em matéria e energia, por meio de ciclos de destruição criadora. Deve-se fragmentar e esgotar a matéria, cessar todas as suas formas de resistência, demolir o orgânico por meio de modos de regulação que criam situações insuportáveis para extrair, dele, a energia necessária para forjar uma nova humanidade: plástica, sintética, que supera suas limitações. Em outras palavras, não cabe a qualquer tipo de lei evolutiva da natureza afirmar quem sobreviverá, no mundo, diante das inúmeras consequências da existência atual humana que designam uma ameaça de extinção; essa determinação cabe ao poder de reconfigurar a humanidade e descartar dela os corpos inaptos – o domínio da necropolítica. Às custas de quais corpos esse projeto se realizará?
A partir dos anos 90, tornou-se popular uma forma de restringir determinados usos do espaço urbano e, sobretudo, o livre deslocamento de determinadas pessoas, por meio de tecnologias como arames, bancos com divisórias, cercas, estacas, pedras e outros tipos de obstáculos debaixo de viadutos, fachadas de estabelecimentos comerciais, monumentos históricos e pontos turísticos. Conhecida como arquitetura hostil – ou, vulgarmente, arquitetura antimendigo –, esse tipo de disposição espacial privatiza locais públicos em prol de uma sensação de conforto, embelezamento e segurança para os proprietários ali residentes, aumentando a vulnerabilidade da população em situação de rua e escasseando formas de sociabilidade cotidianas baseadas na ocupação daquele espaço.
“(…) fronteiras não são mais meras linhas de demarcação que separam distintas entidades soberanas. Cada vez mais elas nomeiam o que poderíamos descrever como a violência organizada que sustenta o capitalismo contemporâneo e nossa ordem mundial em geral. Mas, talvez, para ser exato, não devamos falar de fronteiras em geral, mas em ‘fronteirização’, ou seja, o processo pelo qual certos espaços são transformados em lugares intransponíveis para certas classes de populações que, deste modo, são submetidas a um processo de racialização; lugares onde a velocidade deve ser desabilitada e as vidas de uma multidão de pessoas julgadas indesejáveis devem ser imobilizadas, se não estilhaçadas.” (Bodies as Borders, p. 5)
Porém, há várias formas de contestar o uso do espaço público; uma delas ocorreu no dia 24 de julho, em São Paulo, quando a estátua de Borba Gato, um monumento de elogio à perseguição de povos originários no território brasileiro, foi queimada em protesto popular [1]. O ato faz parte de uma demanda maior de reconfiguração urbana que afeta nomes de ruas, estátuas e demais obras de arte e arquitetura: transferir apologias públicas a perpetradores da violência e da imposição do poder para figuras de resistência. Um abaixo assinado lançado em 29 de julho propôs a substituição da estátua de Borba Gato por uma estátua de Tereza de Benguela, líder quilombola no século XVIII.
“A presença destes mortos funestos [estátuas e monumentos coloniais] no espaço público tem por objetivo fazer com que o princípio de assassínio e de crueldade que personificaram continue a assombrar a memória dos ex-colonizados, sature o seu imaginário e os seus espaços de vida, provocando-lhes assim um estranho eclipse da consciência e impedindo-os, ipso facto, de pensar com clareza.” (Crítica da Razão Negra, p. 221)
A imaginação necessária para responder criticamente às falhas pode promover a nova consciência planetária baseada na reconstituição de laços comunais evocada pela obra de Mbembe, responsável pela reparação de um sujeito que foi demolido e espoliado de si mesmo e de um pertencimento comum e tangível: reterritorialização. Venha acompanhar um debate em que mundos possíveis surgem nas brechas deixadas por cada falha, bug, ruína.
#FAIL, de 27 de setembro a 1º de outubro de 2021.
[1] Paulo “Galo” Lima, do coletivo Revolução Periférica, e sua companheira Géssica, tiveram prisão preventiva de cinco dias decretada no dia 28 de julho, em decorrência da manifestação. Géssica foi liberada dia 30 de julho; no momento em que publicamos esse texto, Paulo já acumula dez dias de prisão injusta. O MediaLab.UFRJ reitera sua indignação com a prisão e a solidariedade com Paulo e Géssica.
*Henry Fragel é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura/ ECO-UFRJ e pesquisador do MediaLab.UFRJ.