// iFood: marketing 4.0 e a tentativa de desmobilização da luta dos entregadores
11 de abril de 2022por Helena Strecker*
Na última segunda-feira (4), a Agência Pública publicou uma reportagem revelando que agências publicitárias contratadas pelo iFood desenvolveram campanhas para desmobilizar a luta dos entregadores por aplicativo. Assinada por Clarissa Levy, a matéria detalha os serviços prestados pelas empresas de marketing, que incluíram a criação de páginas e perfis falsos nas redes sociais, de petição online e até mesmo o envio de funcionários para manifestações dos trabalhadores, com intuito de implantar novas pautas e esvaziar a narrativa da greve.
Segundo documentos das campanhas e relatos de funcionários para a Pública, as empresas de inteligência e monitoramento digital teriam criado duas páginas no Facebook: a Não breca meu trampo, com conteúdo político, e a página de humor Garfo na Caveira. Chamada de “marketing 4.0”, a estratégia era simular a forma dos entregadores de se comunicarem, utilizando uma linguagem informal e com erros gramaticais. As empresas monitoraram durante meses as greves dos trabalhadores e buscaram criar, a partir das páginas, uma contra-narrativa para suavizar o impacto das mobilizações em torno do “Breque dos Apps”, paralisação que ocorreu nas principais capitais do Brasil em julho de 2020.
As páginas no Facebook publicaram conteúdos criticando a “politicagem” envolvida nas greves, os projetos de lei em tramitação e a criação de sindicatos, ao mesmo tempo que exaltavam a liberdade de ser seu próprio chefe e fazer seus próprios horários. Um vídeo obtido pela reportagem mostra os publicitários comemorando que desmobilizaram ou, como eles dizem, “mataram” o Galo, entregador que ficou famoso em 2020 ao denunciar as condições precárias de trabalho por aplicativos. Já os perfis falsos, também criados pelas empresas, foram utilizados no Facebook e no Twitter para fazer comentários críticos às iniciativas #ApagãoDosApps e #BrequeDosApps.
A reportagem detalha minuciosamente as táticas pouco convencionais utilizadas pelo iFood, mas não é novidade que a empresa prefere responder às denúncias dos entregadores na base do marketing.
No início da pandemia, ainda em 2020, o iFood foi uma das primeiras empresas a criar iniciativas pensando nos consumidores e nos entregadores “parceiros”. A primeira delas foi a “entrega sem contato”, dispositivo incorporado no aplicativo que visava evitar a transmissão do covid-19, excluindo todo contato físico entre cliente e trabalhador. Um pouco depois vieram os fundos de apoio, de proteção e o “Fundo Solidário” para parceiros diagnosticados com a doença. Também houve o anúncio de distribuição de EPIs como álcool em gel e máscara, e o estímulo às gorjetas dentro do próprio aplicativo.
O que as iniciativas têm em comum é que todas elas foram imensamente divulgadas pelo iFood em seus sites, redes sociais e campanhas publicitárias. Mas quando olhamos para os relatos de trabalhadores, poucos viram alguma dessas medidas funcionando na prática. Para pegar o exemplo da máscara e do álcool em gel, há declarações de que a retirada “deveria ser feita em um local distante, muitas vezes até em outra cidade, e as plataformas não arcavam com os custos do deslocamento” (FAIRWORK BRASIL, 2022, p. 21). Já no caso dos fundos de apoio, vale mencionar que foram criados um pouco depois do iFood conseguir derrubar uma liminar da Justiça do Trabalho que obrigava a empresa a fornecer uma assistência financeira (no valor de R$ 1.045,00) aos trabalhadores contaminados.
Os entregadores evidenciam que o suporte da plataforma é ruim, com atraso nas respostas ou até mesmo falta de resposta para as questões colocadas no chat. E tudo indica que as iniciativas foram feitas de forma desorganizada e sem comunicação clara com os trabalhadores.
Não é exagero dizer que a pandemia escancarou a precariedade do trabalho por aplicativo, evidenciando a falta de condições dignas, as baixas remunerações e longas jornadas de trabalho, que em alguns casos chega a mais de 12 horas diárias. Por um lado, ganhou força a organização coletiva, a luta contra a precarização do trabalho e até mesmo a criação de projetos de lei envolvendo a categoria dos entregadores. Mas por outro, todas essas mobilizações fizeram com que o iFood se movimentasse mais e mais para limpar sua imagem para os consumidores e a sociedade civil.
Ainda em 2020, após a primeira leva de protestos chamada #BrequeDosApps, o iFood comprou um espaço no Jornal Nacional para passar uma mensagem institucional, que foi exibida logo após a reportagem sobre as manifestações. O presidente da empresa também já teve sua coluna publicada na Folha de São Paulo, e os ouvintes do podcast Foro de Teresina, da revista Piauí, escutam semanalmente as propagandas do aplicativo no meio dos episódios. A empresa também criou a página Abrindo a cozinha em seu site, com intuito de mostrar com “transparência”, por exemplo, como funciona a relação do iFood com os entregadores e como o valor de entrega é calculado.
A máquina publicitária do iFood tem funcionado a todo vapor, mas após dois anos de denúncias ainda não há indícios de melhora nas condições de trabalho ou aumento significativo da remuneração. O relatório publicado em março de 2022 pelo Fairwork Brasil, projeto internacional que busca construir uma política de plataformas mais justa, aponta que a empresa não oferece condições dignas de trabalho, assim como as outras plataformas digitais de trabalho que operam no Brasil.
Dentre os problemas denunciados pelos entregadores, há a baixa remuneração (que não inclui o deslocamento deles até o restaurante), os bloqueios e desligamentos arbitrários, sem explicação ou justificativa, e as dificuldades com o suporte (que é automatizado, muitas vezes atrasa ou permanece sem resposta). Nos contratos, a empresa se exime de qualquer responsabilidade pelas condições de trabalho, por riscos e acidentes, e o termo “parceiro” é utilizado também para afastar os entregadores de qualquer relação trabalhista.
Como resultado do envolvimento com a iniciativa Fairwork, o iFood criou uma versão mais acessível dos seus contratos (com ilustrações e fluxogramas), reforçou o projeto de construir pontos de apoio para entregadores e criou um canal de comunicação com os trabalhadores através de fóruns. Por estes motivos, a empresa pontuou em 2 dos 10 critérios de trabalho decente elencados pelos pesquisadores do projeto. Ainda assim, o relatório conclui que as principais empresas não seguem os princípios de trabalho decente, operando com salários baixos, condições precárias, desigualdade e pouco espaço de comunicação com os funcionários.
Se nas redes sociais o iFood demonstra preocupação com aqueles que arriscam suas vidas pela entrega, por trás das telas a empresa prefere gastar com disputas judiciais e investir em marketing para desmobilizar a luta por melhores condições de trabalho.
Para saber mais:
- Fairwork Brasil 2021: Por Trabalho Decente Na Economia De Plataformas. Relatório completo do projeto Fairwork Brasil.
- Hoje tem greve dos entregadores e você precisa participar. Texto de Nina Desgranges, pesquisadora do LED (IFCS/UFRJ) que se desdobra desde 2019 sobre o fenômeno da uberização em pesquisa sobre aplicativos de entrega.
- Os algoritmos do empreendedorismo: A plataformização do trabalho de entregadores de iFood. Artigo de Nina Desgranges.
- Trajetos e trajetórias invisíveis na cidade. Vídeo documentário produzido em parceria entre a Ensp/Fiocruz, a UFRJ e a UFF.
* Helena é formada em psicologia pela UFRJ e pesquisadora do MediaLab.UFRJ.
Ao longo dos anos de 2020 e 2021 contribuiu com o projeto de pesquisa e extensão “Saúde e direitos dos trabalhadores em tempos de plataformas digitais: um olhar sobre a atividade“, que atua com entregadores e motoristas por aplicativo. As conversas com entregadores mencionadas no texto foram feitas no âmbito deste projeto, estando algumas registradas no vídeo-documentário Trajetos e trajetórias invisíveis na cidade, que aborda as condições de vida e saúde dos trabalhadores plataformizados.