#Dobras 9 // Cálculo de personalidade: astrologia ou psicometria?

5 de julho de 2018

Por Paulo Faltay

Seria o Big Data a nova astrologia? Ou quais semelhanças podemos apontar entre o horóscopo, as casas do zodíaco, e as técnicas de profiling, os perfis computacionais construídos a partir da vasta coleta de dados digitais sob gestão e análise algorítmicas? A ressalva: não irei avaliar a legitimidade e validade da astrologia, ou da ciência de dados, mas seus usos em ferramentas que convergem em um ponto e que me parece uma das possíveis respostas para a atual popularidade de ambas: a produção de métodos e discursos, orientados por cálculos e previsões, sobre a personalidade e o comportamento individual e coletivo. Assim, tomo as relações entre aspectos míticos e artefatuais, dos dois campos, não como contradições, mas antes como oscilações para analisar aqui pares como interioridade/exterioridade e objetividade/subjetividade.

Bom, a proximidade entre os campos começa pelo próprio termo algoritmo, de algoritmi, a tradução em latim do nome do matemático, astrônomo e astrólogo persa al-Khwarizmi (780-850). Considerado um dos fundadores da álgebra, o persa foi responsável pela difusão dos algarismos arábicos, do sistema decimal, da adoção do símbolo do número zero e, na seara dos astros, construiu tabelas com cálculos detalhados das posições e do movimento do Sol, da Lua e dos planetas. Cartografias celestes decisivas na obtenção de dados exatos para a elaboração de horóscopos e mapas astrológicos.

O estudo dessas cartas e o cálculo da posição dos astros prometiam prever eventos naturais, sociais e humanos. As análises celestes se apresentavam como cosmovisão sistêmica e universal, permitindo ordenação de sentido e orientação futura, fornecendo, assim, explicações coerentes acerca dos eventos, fenômenos naturais, reações e situações coletivas e individuais. O estudo dos astros se apresentava como um modo de reflexão e conexão entre natureza e cultura, de modo que aspectos considerados inacessíveis por nós fossem representados de maneira menos incontrolável e misteriosa.

Daí uma primeira questão que se apresenta de maneira bem simplificada. Por que mesmo com o racionalismo científico se tornando paradigma hegemônico na concepção e orientação do saber e das condutas, deslocando a sociedade de sua inscrição no cosmo e levando ao descrédito as artes divinatórias, a astrologia, ao contrário das outras mânticas se mantém tão popular ainda hoje? Uma primeira pista é levar em conta a incapacidade de efetivação do projeto moderno (Latour, 2009), e sua consequente produção de híbridos, para perceber como a aceitação da astrologia mantém uma objetividade operativa, entre oscilações de diagnóstico e conselho, em um contexto de subjetividade individual (Morin; Cassé, 2008).

Janine Ribeiro (1996) aponta a leitura jungiana da astrologia enquanto modelos ou padrões psicológicos como fundamental para o deslocamento das predições que tratavam de fatos e de acontecimentos para uma arte quase psicológica, passando a focar majoritariamente da pessoa e não mais do que lhe acontece. Aqui há uma clivagem interessante: se para o sujeito psicológico moderno a verdade e o conhecimento de si não se encontra privilegiadamente em elementos externos, mas no exame e escrutínio da sua interioridade, esta concepção de atuação dos corpos celestes aponta para uma dimensão psíquica que converge com uma série da realidade que está obviamente fora dos sujeitos. De modo que “o que o divinatório revela é a psique mais profunda do indivíduo -mas repetimos: a psique não é rigorosamente individual, está engatada no cosmos, e é exatamente isso o que legitima ou faz funcionar os procedimentos de leitura”.

É nessa faceta heterogênea da produção de subjetividade, borrando os limites entre dentro e fora, que me interessa na aproximação entre as práticas astrológicas e dos dados. Em especial a utilização de técnicas psicométricas para a análise de emoções e traços psicológicos que seriam supostamente revelados a partir de dados pessoais e relacionais online, nossos traços comportamentais exteriorizados. Tais métodos, como demonstrou o recente escândalo envolvendo a consultoria de marketing político Cambridge Analytica, são amplamente utilizadas tendo como objetivo a elaboração de estratégias de influência, persuasão e estímulo para fins comerciais, eleitorais e securitários.

Mais do que um caso isolado, o imbróglio da C.A. escancarou o modo no qual o monitoramento e a análise das informações de nossas condutas conectadas estruturam a extração, acumulação e obtenção de valor no capitalismo da vigilância e na economia das plataformas. Uma economia psiquica dos algoritmos  cujos agentes, conforme o coletivo Tactical Tech nomeou, se organizam em torno de uma Indústria da Influência. E aqui, já que estou gastando o latim, é interessante lembrar que influência vem  de influentĭa, palavra que servia para designar como os astros, derramando fluidos etéreos, afetavam o comportamento das pessoas.

Para não me alongar sobre as técnicas psicométricas e seus efeitos, que podem ser entendidos mais detalhadamente aqui e aqui, enfatizo que a visada dos algoritmos para os traços psiquicos se direcionam sobre as dividualidades, visando menos um conhecimento aprofundado do individuo ou do sujeito unificado, mas sobre como parcelas da personalidade podem ser usadas em cálculos preditivos para sistemas de recomendação, direcionamento de conteúdos políticos, etc. Conforme Fernanda Bruno:

O seu principal objetivo não é produzir um saber sobre um indivíduo identificável, mas usar um conjunto de informações pessoais para agir sobre similares. O profiling atua, ainda, como categorização da conduta, visando à simulação de comportamentos futuros. Neste sentido, um perfil [comportamental, de personalidade etc] é uma categoria que corresponde à probabilidade de manifestação de um fator (comportamento, interesse, traço psicológico) num quadro de variáveis” (Bruno, 2013).

Aqui, por último, a velha questão: teria Édipo matado o pai e se casado com a mãe se o Oráculo não tivesse previsto? Ou seja, as predições feitas pelo cálculo de modelos e padrões de personalidade que prometem saber sobre nós mais do que nós mesmos descrevem ou conduzem nossos comportamentos? Adorno (2007), muito crítico e racional como um bom virginiano, em sua análise da coluna de astrologia do Los Angeles Times, defendeu que o horóscopo na comunicação de massa fabricaria o futuro à imagem dos modos de vida já estabelecidos, “ilusões” que tornam a irracionalidade da sociedade capitalista em contingências administradas individualmente. Talvez. Neste sentido, um dos aspectos (atenção, astrais, não estou dizendo todos) da popularização da astrologia parece passar por uma negociação da hiperresponsabilização individual no neoliberalismo e a procura por garantias de pertencimento coletiva.

Inegável, entretanto, que a influência tanto abstrata dos astros permitem uma deliberação subjetiva ao conjugar descrição e conselho. As nuvens, por sua vez, na propagada objetividade, neutralidade e “inteligência” das tecnologias que as alimentam, ainda nos parecem ocultas. A opacidade de seus mecanismos apresentam modelos e padrões que de modo indutivo e calculável produzem um conhecimento divinatório em que “as correlações denotam uma probabilidade de que as coisas terão o mesmo resultado no futuro. O que elas não revelam é porque este deve ser o caso” (Hildebrand, 2008, p.40).

Se a promessa alardeada da análise algorítmica do big data se ancora no fato de descobrir padrões em uma escala de informações que a cognição humana não alcança, a suposta autoevidência de sua objetividade não deve mascarar os processos discursivos, a racionalidade ao qual obedece e as contingências materiais e sociotécnicas que os legitima. Assim, quais os perigos em delegar nossas trajetorias individuais e coletivas para a mântica dos dados? Ou estou expressando apenas o temor de um capricorniano neuroticista?

Referências

ADORNO, Theodor W. As estrelas descem à Terra: a coluna da Astrologia do Los Angeles Times – um estudo sobre superstição secundária. São Paulo: Unesp, 2007.

BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2013. 190 p.

HILDEBRANDT, Mireille. Defining profiling: a new type of knowledge? In: HILDEBRANDT, Mireille.; GUTWIRTH, Serge. (Orgs). Profiling the European citizen. Cross- disciplinary perspectives. Dordrecht: Springer Science, 2008.

LATOUR, Bruno.Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 2. Ed. Rio de janeiro: Ed. 34, 2009. 152p.

MORIN, Edgar; CASSÉ, Michel. Filhos do Céu: Entre Vazio, Luz e Matéria.

RIBEIRO, Renato Janine. Como a astrologia se tornou junguiana. São Paulo: Jornal A Folha de São Paulo, publicado em 17/11/1996. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/11/17/mais!/3.html