#Dobras 21 // Origens da cidade inteligente e os revolucionários chilenos

4 de outubro de 2018

Por Victor Vicente*

O imaginário sobre espaços urbanos foi invadido por imagens tecnológicas. Cidades hiperconectadas, com capacidade responsiva em tempo real e sensibilidade às demandas da população, comumente expressas com o auxílio de uma multiplicidade de sensores físicos e sistemas digitais. Mas o que de fato é uma cidade inteligente? Neste debate, precisamos entender que antes de ser um projeto, uma cidade realmente existente, a cidade inteligente é um conceito. E, como conceito, esta não pode ser compreendida sem que analisemos suas contingências históricas, políticas, sociais e econômicas, ou seja, as características que tornaram possível a emergência desta realidade atual.

Pois bem, o que você pensa quando lhe falam de cidades inteligentes? Milhares de dispositivos eletrônicos, objetos conectados, coleta de dados massiva, câmeras inteligentes, vigilância difusa? É comum tornarmos nossa atenção para o hemisfério norte com o intuito de encontrar bons exemplos desse tipo de projeto urbano. Mas e se eu dissesse que, ainda na década de 70, a América Latina foi palco de um dos experimentos mais radicais de implementação da computação para gestão urbana, e em escala nacional? Um experimento que ajudou a antecipar, e a questionar, o debate sobre uso tecnológico nas cidades?

CyberSyn:

O Golpe Militar de setembro de 1973 encerrou a vida de Salvador Allende e, com ela, o plano de instituir um governo socialista pela via democrática no Chile. Encerrou também um projeto político que tentava encontrar na computação uma solução para a crise econômica e gerencial que começava a ameaçar o país. O CyberSyn, como seria conhecido, objetivava acelerar o processo de tomada de decisão do governo conectando-o a uma rede de escala nacional para intercâmbio de dados. O projeto tentava responder, assim, aos desafios impostos pela transição de regime ao possibilitar que o governo transmitisse e recebesse informações das empresas estatais em tempo real, e a um baixo custo. Visto em retrospecto, o CyberSyn seria tido como uma iniciativa precursora de um modelo de governança que é até hoje considerado inovador. Uma iniciativa que reconhecia, ainda na década de 70, o papel estratégico dos dados e da capacidade de resposta rápida para governar (MEDINA, 2011).

Quatro elementos estruturavam o CyberSyn:

(1) uma rede de máquinas telex (Cybernet) alocadas nas principais empresas estatais do país para comunicação rápida;

(2) um software de modelagem estatística (Cyberstride);

(3) um software de simulação econômica (CHECO);

(4) e um centro de operações.

Com este sistema, o governo chileno esperava ter os meios para melhor controlar e se adaptar aos desafios de gestão nacional. A rede de máquinas telex permitiria, por exemplo, que o governo monitorasse os níveis de produtividade de fábricas e alertasse os agentes do governo responsáveis caso os índices fossem considerados anormais. Os softwares de simulação econômica e modelagem estatística possibilitariam que o governo antecipasse efeitos de decisões políticas, projetando resultados esperados, e, finalmente, o centro de operações, que parecia saído de um filme de ficção científica, forneceria um espaço integrado no qual gerentes poderiam ter acesso a dados, formular respostas e enviar ordens por meio da rede de comunicação em situações emergenciais.

O centro de operações era localizado em uma sala de um edifício de aparência comum, sede da companhia nacional de telecomunicações, no centro de Santiago, capital do país. Não havia mesas nos dez metros de diâmetro do espaço e mesmo o papel havia sido explicitamente abolido. Todo e qualquer dado deveria ser visível nas muitas telas que pendiam das paredes. No centro, sete cadeiras giratórias eram dispostas em círculo, com suas faces para dentro. Botões preenchiam seus braços de fibra de vidro, a interface física de um complexo sistema que encontrara na computação uma esperança política.

Como aponta a professora de informática e computação Eden Medina, o CyberSyn não pode ser compreendido fora do contexto de crise experienciado na transição do regime político. Em seu governo, Salvador Allende defendeu a manutenção democrática para a consolidação do modelo socialista. Os Estados Unidos responderam à sua eleição financiando partidos políticos e meios de comunicação de oposição, além de promover sabotagens à economia chilena. O governo americano usou sua influência para cortar crédito bancário privado ao Chile, impediu que Allende renegociasse a dívida nacional que herdara de seu predecessor e reduziu o valor das exportações dos EUA para o Chile. A resistência internacional se somava ao ambiente de fragilidade que se desdobrava no próprio país. Dado o esforço de nacionalização de cerca de 200 empresas, o custo operacional e gerencial do governo chileno começava a aumentar vertiginosamente no início da década de 1970. Membros do governo se viram rapidamente frente a um desafio que ameaçava ruir todo o projeto político da Unidade Popular (UP), a coalização partidária de esquerda que governava o país sob a liderança de Allende. O desafio em questão poderia ser traduzido para o campo da gestão: como administrar o novo grau de complexidade colocado por este governo? A decisão de aplicar ideias científicas e investir em tecnologias como o computador mainframe nasceu de um encontro entre a necessidade de solucionar esses problemas e a afirmação da tecnologia e ciência como vetores de transformação positiva por parte da Unidade Popular.

Em particular, a cibernética foi determinante para a criação do CyberSyn. Proposta na década de 1940 por Norbert Wiener como o estudo científico do controle e da comunicação no animal e na máquina, a cibernética buscava estruturar modelos que explicassem e regulassem o funcionamento de organizações. Muitas vezes, ciberneticistas misturavam metáforas da engenharia e da biologia para descrever o comportamento de sistemas complexos, que vão desde operações de um computador até o funcionamento do cérebro humano. Articulada formalmente no final da década de 1940, os insights da cibernética foram recebidos rapidamente por universidades e pesquisadores de campos tão diversos quanto fisiologia, psicologia, antropologia, matemática e engenharia elétrica. Para os ciberneticistas, uma linguagem universal para o estudo científico de máquinas, organismos e organizações se formava. Na década de 50, o campo já havia se tornado mainstream e começava a fomentar uma discussão cultural ampla sobre o papel da técnica para a regulação de sistemas e indivíduos. O pensamento cibernético influenciou trabalhos subsequentes em áreas diversas, como teoria da informação, computação, ciência cognitiva, engenharia, biologia e ciências sociais. De especial interesse para os políticos e profissionais envolvidos no governo chileno foi a cibernética de Stafford Beer, que aplicava tais estudos na administração pública e privada. No início da década de 70, o ciberneticista britânico já havia publicado três livros e construído uma carreira de sucesso no setor privado, apropriando-se dos estudos da cibernética para produzir reflexões sobre a gestão organizacional. Stafford Beer seria então contratado e se tornaria o principal consultor e articulador do projeto que se desenvolvia no país.

O Cybersyn foi formulado como um sistema de controle em tempo real capaz de coletar dados econômicos em todo o país, transmitindo-os ao governo e combinando-os de maneira a ajudar na tomada de decisões do governo. Importante notar que neste mesmo momento a ARPANET, rede que precedeu a Internet, ainda estava nos seus primeiros anos. Países tecnologicamente mais avançados do hemisfério norte ainda tentavam – e muitas vezes falhavam em – construir sistemas para intercâmbio de dados em larga escala, mesmo com maiores recursos econômicos. Em 1970, o Chile possuía aproximadamente cinquenta computadores instalados no governo e no setor privado, a maioria dos quais estava desatualizada, enquanto aproximadamente 48.000 computadores de uso geral haviam sido instalados nos Estados Unidos na mesma época. A cibernética seria mobilizada assim como meio de viabilizar um sistema de comunicação e controle eficaz a partir da realidade e dos recursos existentes no Chile.

Interrompido pelo Golpe Militar, o projeto nunca pôde ser amplamente executado e validado como um modelo de sucesso no Chile. O esforço transcontinental necessário para implementar a infraestrutura crítica do sistema não transformou a economia do país ou o modo de governar. Ainda assim, o projeto reverberou um futuro possível para a computação em governos. Hoje, podemos vê-lo como um antecipador do presente discurso sobre inovação no setor público. Seja em conferências, relatórios acadêmicos ou empresariais, é latente na atualidade a afirmação da relevância dos dados para a tomada de decisão. Em muitos aspectos, o sonho cibernético dos envolvidos no projeto chileno finalmente se tornou realidade: a coleta e análise de dados se tornou prática de governos ao redor mundo.

 

Cidades inteligentes

O CyberSyn pode nos ajudar a compreender a noção de cidades inteligentes atual por alguns motivos. Em primeiro lugar, o caso trata da complexa relação entre tecnologia e política, mostrando como governos aplicam tecnologias para fazer avançar objetivos particulares. Com isso, ajudar a esclarecer que a tecnologia não é neutra ou apolítica. Ao contrário, nos interessa apontar a tecnologia como meio para melhor compreensão de decisões políticas localizadas em determinados momentos históricos. Neste sentido, o CyberSyn mostra também como a América Latina e outras regiões do Sul Global são importantes para aqueles interessados no campo da história das tecnologias. Em segundo lugar, o CyberSyn explicita as raízes cibernéticas de um discurso sobre inovação e aplicação tecnológica na gestão pública que é hoje pervasivo ao redor do globo. Quando o discurso contemporâneo ignora ou abandona ativamente experiências passadas, observar o campo de estudos que melhor sintetizou um esforço inicial por governança baseada na técnica de sistemas de informação pode contribuir para a compreensão das condições de existência do discurso atual e de suas problemáticas persistentes. Em terceiro lugar, o projeto ilustra o desejo por dados, agora localizado historicamente, como meio de articular respostas políticas em tempo real. Todos esses elementos são, em alguma medida, expandidos no discurso contemporâneo.

A lição que fica: a cidade inteligente não é uma invenção ex nihilo, criada do nada. Optar por ignorar o passado nos faz cair regularmente em um campo de ingenuidade que continua a prejudicar o impacto social positivo de algumas implementações tecnológicas para a gestão das cidades.

Quer saber mais? O livro “Cybernetic Revolutionaries”, da professora Eden Medina, é mais do que recomendado para quem trabalha com tecnologias da informação e comunicação e territórios urbanos.

Victor Vicente é pesquisador do MediaLab.UFRJ e coordenador de comunicação do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio). @vfrvicente