#Dobras 24 // A dimensão forense da arquitetura: a construção estético-política da evidência
22 de março de 2019O #Dobras estréia em 2019 com a publicação de trechos da entrevista realizada com Paulo Tavares, arquiteto, professor da UnB e membro do Forensic Architecture. O conteúdo faz parte da obra Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem, organizado por Fernanda Bruno, Bruno Cardoso, Marta Kanashiro, Luciana Guilhon e Lucas Melgaço e publicada pela editora Boitempo (clique aqui para ler a sinopse).
Nas próximas semanas acontecerão dois eventos de lançamento do livro, um no Rio de Janeiro e o outro em São Paulo. Confira as datas:
Rio de Janeiro
Noite de autógrafos com Fernanda Bruno, Bruno Cardoso, Joana Varon, Paula Sibilia e Rosa Pedro.
Quinta-feira, 28 de março, às 19h. Livraria da Travessa em Botafogo (Rua Voluntários da Pátria, 97).
São Paulo
Noite de autógrafos e debate com Fernanda Bruno, Marta Kanashiro, Rodrigo Firmino, Rafael Evangelista, Bruno Cardoso e Henrique Parra.
Sexta-feira, 05 de abril, às 19h. Livraria Tapera Taperá (2º andar, loja 29, Av. São Luís, 187 – República)
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[Fernanda Bruno, Anna Bentes e Paulo Faltay] Um eixo importante do trabalho do Forensic Architecture (FA) é utilizar ferramentas de visualização para dar a ver violações de direitos humanos, na maior parte das vezes veladas por processos políticos ou sociais. No percurso de trazer para o visível o que está invisível, como são pensadas as técnicas de apresentação dos projetos, seja em contexto jurídico, artístico ou social? Qual a importância de técnicas de visualização para a produção de um discurso jurídico-político?
[Paulo Tavares] Cada caso apresenta seu próprio desafio metodológico, tecnológico e estético, dependendo da forma de violência que se busca mapear e analisar. Trazer ao visível atos que não se apresentavam como violência, ou formas de violência veladas e escondidas, significa ampliar nosso entendimento do que constitui direitos e como protegê-los. Na maioria dos casos, o que se vê é um processo de apagamento, tanto das evidências como no próprio nível do discurso, de maneira que sempre estamos confrontando esse processo de apagamento e invisibilização de atos de violência tanto no plano da prova documental como no das narrativas.
Então, a decisão sobre quais ferramentas utilizar, que tipos de imagens e visualizações, quais estratégias narrativas e arquivísticas, é de alguma maneira “site-specific”, quer dizer, contextual, dependendo do conflito e do terreno. Cada situação demanda uma inovação nos modos de mapear, documentar e visualizar formas de violência. Com o passar do tempo, a arquitetura forense acabou desenvolvendo um conjunto de ferramentas e tecnologias que são replicáveis, e cada vez mais podemos observar a apropriação dessa “caixa de ferramentas” por diferentes movimentos sociais, organizações civis e novas formas de jornalismo investigativo.
O projeto The left-to-die boat [1] – um trabalho muito poderoso de Lorenzo Pezzani e Charles Heller, ativistas envolvidos com a política de deportação e imigração na União Europeia – é muito significativo nesse sentido. O problema da invisibilidade-visibilidade que se apresentava estava relacionado com a necessidade de se traçar a trajetória de um barco de refugiados no Mediterrâneo na época em que a Otan implementou uma no-fly zone na região, entre março e outubro de 2011, devido à intervenção militar na Líbia. Sabendo da trajetória, seria possível mostrar que a Otan tinha sido responsável pela morte desses refugiados ao ignorar seus pedidos de socorro, o que está determinado por lei internacional.
Diferente da terra, os oceanos, por constituírem uma superfície líquida, aparentemente não registram nenhum traço de ações humanas. A investigação necessitava um tipo de conhecimento que lhe permitisse entender os “traços” deixados por esse bote no oceano, a história desse evento tal como registrada na “memória” do mar. Em outras palavras, era preciso fazer uma leitura do mar como mídia histórica. Isso implicou trabalhar com especialistas no campo da oceanografia e dinâmica de fluidos para reconstituir a trajetória do barco.
No projeto da Guatemala, o problema era mostrar como ações no ambiente – construções e destruições – funcionaram como um meio de violência contra modos de vida indígena. Assim, era importante tentar entender e visualizar como transformações ambientais relacionavam-se com padrões de violência política como assassinatos, massacres, violência sexual e deslocamentos forçados. Utilizamos códigos de análise de imagens de satélite que nos permitiram relacionar padrões de transformação da cobertura vegetal (desmatamento e aforestação) com padrões de violência política.
No caso de genocídio do povo kinja, um projeto ainda em andamento, o objetivo é mapear vestígios de antigos assentamentos que foram destruídos ou removidos forçosamente num contexto de floresta muito densa e úmida. A floresta tropical é, nesse sentido, parecida com o oceano, pois é difícil identificar rastros de ações humanas na superfície vegetal, uma vez que ela está em constante mutação, decomposição e crescimento; tudo é muito dinâmico e transformado muito rapidamente, inclusive as habitações indígenas que são feitas de elementos da própria vegetação da floresta.
Sabíamos que as aldeias deixam uma espécie de rastro, vestígio ou ruína na forma de “florestas secundárias”, quer dizer, florestas que cresceram em clareiras de antigos assentamentos. Utilizamos uma tecnologia de análise de imagens de satélite que possibilita identificar a idade da floresta que é usualmente utilizada para se medir concentrações de carbono, porque florestas com diferentes idades contêm diferentes taxas de carbono que variam com a quantidade de biomassa. Trata-se de uma metodologia desenvolvida no contexto de mapeamentos do aquecimento global, de que nos apropriamos para mapear padrões de violência.
[Fernanda Bruno, Anna Bentes e Paulo Faltay] Nesse gesto de “desconstruir a desconstrução”, indo na contramão de toda uma corrente filosófico-estética do século XX e parte do XXI, por um lado, como descreve Eyal Weizman, o FA estaria reintroduzindo a verdade, o fato, a evidência nessa arena estético-política. E, de fato, esse é um gesto muito potente nestes tempos de pós-verdade. Por outro lado, quando se observa o trabalho do FA, há uma dimensão extremamente artefatual nessa verdade. A verdade é um artefato. Não há um retorno à verdade clássica, segundo um paradigma da objetividade do mundo, é a verdade como disputa e como artefato. Em uma entrevista, Eyal Weizman fala também sobre esse gesto do FA de convocar a materialidade e os objetos como testemunhas, convocá-los a falar. E, como testemunha, esses artefatos também podem mentir, como uma testemunha humana pode mentir. Como trabalhar essas questões na busca pela verdade?
[Paulo Tavares] Acho que há, sim, uma dimensão construtiva no fato, uma dimensão artefatual na constituição da verdade, tanto do ponto de vista histórico como do científico, legal e no plano das narrativas e representações. O que não significa corroborar a narrativa dos “fatos alternativos”, mas sim afirmar que a verdade é sobretudo um campo de disputa sociopolítico que permeia vários espaços no qual esse processo construtivo é operado e legitimado. Acessar a verdade de algo, de um evento, de um contexto, exige esse trabalho construtivo sem o qual os fatos ou as evidências aparecem como meros fragmentos de uma realidade impenetrável em sua significância histórica, política e social.
A prática da arquitetura forense tem muito desse gesto de construir, tecer, narrar, editorializar, filtrar, compor e mapear. No contexto atual, observa-se que essa disputa é central e muito violenta, porque estamos imersos numa espécie de noise midiático, em que a proliferação de dispositivos, imagens, memes, virais e outras formas de mediação com o real que estruturam nosso cotidiano tornaram-se armas de contrainformação. O poder, hoje, nutre-se da possibilidade de intervir na realidade através da criação dessa poluição contrainformativa midiática. Nesse sentido, acredito que práticas como a arquitetura forense e o jornalismo investigativo tornaram-se centrais para interpretar e agir nos conflitos contemporâneos.
Um exemplo interessante é um trabalho do FA sobre o último ataque de Israel à Faixa de Gaza, a Operação Black Friday [2]. Esse projeto usa vídeos postados em mídias sociais, produzidos pelas vítimas e testemunhas desse ataque, para reconstituir a lógica da campanha de bombardeamento indiscriminado lançada por Israel nesse dia.
No início, quando a internet ainda era pensada como um espaço de amplificação da democracia, e não como este grande sistema de vigilância global no qual se transformou, pensava-se que por meio das comunicações em rede teríamos acesso à realidade de forma mais transparente e sem mediação. O que se vê, no entanto, é justamente o contrário: a proliferação de imagens, documentos e registros não nos permite um contato mais direto e transparente com o real, mas cria a possibilidade de sua total desfiguração.
A cloud é em larga medida uma nuvem de poluição altamente tóxica que, inclusive, abre espaço para novas expressões de fascismo e racismo. Por isso, o trabalho investigativo, construtivo e narrativo me parece fundamental, justamente porque vivemos em uma ecologia de ruídos e distorções.
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Notas
[1] Como apoio a uma rede de ONGs para exigir a devida responsabilização pelas mortes de imigrantes no Mediterrâneo durante as intervenções da Otan na Líbia, o FA desenvolveu um projeto de oceanografia forense para investigar o caso conhecido como The left-to-die boat. Para investigar a morte de 63 imigrantes que se deslocavam em área sob monitoramento marítimo da organização militar internacional, Charles Heller e Lorenzo Pezzani utilizaram tecnologias de vigilância para reconstruir os acontecimentos, demonstrando como diferentes agentes mobilizaram jurisdições complexas e sobrepostas no mar Mediterrâneo central para evitar a responsabilidade pelo resgate de pessoas em perigo. Ao final, foi produzido um relatório que formou as bases para uma série de petições legais contra membros da Otan. Mais informações em: <http://www.forensic-architecture.org/case/left-die-boat/>
[2] O relatório Rafah: black friday é uma colaboração entre o Forensic Architecture e a Anistia Internacional cujo objetivo é fornecer uma reconstrução detalhada do ataque de Israel à cidade e ao campo de refugiados Rafah, na Faixa de Gaza, entre os dias 1º e 4 de agosto de 2014. Como a equipe teve o acesso negado ao local, o FA utilizou uma série de técnicas para reconstruir os acontecimentos com base em informações, imagens e vídeos encontrados em plataformas sociais. Esses materiais foram reunidos em um modelo 3D da cidade que resultou em um dispositivo chamado de Image Complex, que permitiu o reconhecimento de padrões e associações espaciais e temporais dos ataques. O material completo pode ser encontrado em: <http://www.forensic-architecture.org/case/rafah-black-friday/>
[3] A colaboração entre o MediaLab.UFRJ e a autonoma se dá no ambito dos projetos Expulsión: cartografias del desplazamiento e no projeto Intervenção Federal Rio 2018.
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Sobre o autor
Tornar visíveis os rastros opacos ou velados de processos de violência e crimes contra a humanidade e o ambiente é o inquieto exercício de Paulo Tavares. Professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília (UnB), o arquiteto e urbanista formado pela Unicamp, doutor em Research Architecture pelo Goldsmith College de Londres e atual parceiro do Medialab.UFRJ [3] apura a percepção ao mapear e dialogar com os vestígios que elementos como florestas, geoglifos, arquivos de fotografias, imagens de satélites, índices de carbono e elementos botânicos podem revelar sobre os registros da história. Ao combinar fontes heterogêneas de dados, imagens e informações, suas pesquisas e trabalhos visam ampliar as ferramentas, as abordagens e o escopo das tecnologias científicas forenses para a defesa de direitos humanos e ambientais, como nos trabalhos Arqueologia da violência: a floresta como evidência e Guatemala: Operacion Sofia e nos projetos da agência autonoma, plataforma recém-criada que se dedica a explorar novas formas de analisar e produzir o território.
Sobre o Forensic Architecture
O gesto de convocar o testemunho de entes tão diversos, articulando outros saberes e epistemologias às práticas forenses, é o principal foco da metodologia de trabalho da agência de pesquisa Forensic Architecture, à qual o pesquisador brasileiro é associado. Fundada em 2011 pelo arquiteto israelense Eyal Weizman e sediada no Goldsmith College de Londres, o grupo interdisciplinar, que reúne uma equipe composta por arquitetos, urbanistas, cineastas, ativistas e pesquisadores, opera a arquitetura como eixo para produção de evidências e utiliza tecnologias de visualização diversas para investigar e retraçar situações de conflito em contextos jurídicos, políticos e artísticos.