#Dobras 26 // Da totalização do controle ao desconhecido: dados, previsão, fuga*

8 de abril de 2019

Por Paula Cardoso Pereira

Contemplação e profecia

Entre as práticas adivinhatórias dos assírios e babilônicos, a leitura de presságios no fígado de animais sacrificados tinha especial importância. O órgão ocupava um lugar privilegiado dessas práticas e rituais por estar no centro das relações entre corpo e alma. O próprio Platão no seu Timeo descreve o funcionamento do fígado como um receptáculo que “recebe impressões e fornece reflexos a quem o contemplar” (2011, p.173). A anatomia do fígado era assim uma interface “de transformação entre o visceral observado de perto e o sideral invocado de longe” (DIDI-HUBERMAN, 2010) contemplada pelo harúspice, o intérprete das vísceras (Figura 1).

A hepatoscopia, assim chamada a prática, operava como uma combinação da precisão empírica – materializada na visão das entranhas – com a proliferação simbólica – a vidência de toda uma dramaturgia de relações entre os deuses (ibidem). Pode ser relacionada  àquilo que Benjamin chamará de “dom da faculdade mimética”: a capacidade de percepção de uma semelhança que regia ordens de realidade incomensuráveis – o micro e o macrocosmo – e que estaria presente ao longo de toda a história da cultura sob distintas formas (BENJAMIN, 2012). A leitura do fígado funcionava assim como um aparato de orientação adivinhatória acionado por meio de uma observação ao mesmo tempo anatômica e mágica que articulava interpretação e previsão. Didi-Huberman pontua que, nesse contexto:

contemplar significa antes de tudo observar uma realidade natural delimitando-a como templum, ou seja, como um campo estrito de ação sobrenatural que revela seus sinais de predição, de modo que olhar o espaço se torna olhar no tempo. (Didi-Huberman, 2010, p. 26. Tradução minha)

 

Fígado profético etrusco em bronze, encontrado em Piacenza, Itália. As inscrições correspondem a deidades e serviam como ferramenta para práticas adivinhatórias. Fonte imagem: Wikipedia.

 

Ainda que a adivinhação pela hepatoscopia é uma manifestação própria daquilo que se denominou pensamento mágico, há algo que parece sobreviver ao longo da história das técnicas, práticas, objetos e rituais relacionados à previsão. É a presença de um olhar, identificado por Jacques Vernant em seus estudos sobre a psicologia da adivinhação, capaz de transmutar através de uma modificação decisiva o estatuto de visibilidade do objeto contemplado. Este passa então de coisa visível, no sentido empírico, para ser suporte para coisas que entrever ou prever e que é capaz de acessar “relações íntimas e secretas das coisas, as correspondências e as analogias” (ibidem, p. 37).

Dados como templum

Hoje esse olhar parece habitar as engrenagens da máquina, e mais especificamente, seus programas. É o “olho do algoritmo” (PASQUINELLI, 2015) opera uma transmutação da vastidão de dados que incessantemente produzimos, armazenamos, comercializamos, acessamos e compartilhamos em coisas que entrever. Assim, as correlações e padrões extraídos dos bancos de dados tornaram-se templum onde as indústrias do mercado, da ciência e da guerra, cada vez mais entrelaçadas, buscam revelar os signos da previsão por meio da regulação automatizada da interpretação e do campo de ação. Nesse regime, o passado se converte em mero acúmulo de padrões e matriz para um porvir fundado na virtualidade do provável. A outrora incerteza existencialista é agora apresentada como um “problema de informação” que pode ser solucionado recorrendo-se aos dados e análises adequados (WANG, 2017). Seu funcionamento implica a formação de uma rede sociotécnica cujo poder de direcionar política e economicamente a atual conjuntura parece já inquestionável: o saber do algoritmo se tornou central para o capitalismo, apontando inclusive para o surgimento de um novo tipo de poder (SHOSHANA, 2019). Tais transformações podem ser entendidas na esteira de um projeto que tem como horizonte uma economia da vigilância, a automação da visibilidade e da cognição e as ambições do biopoder.

Nesse cenário, os sistemas e tecnologias orientados ao reconhecimento inteligente de imagens e à previsão materializam um conjunto de técnicas, práticas, saberes e discursos que modulam perceptiva, afetiva e cognitivamente o indivíduo contemporâneo. Como veremos, eles não se restringem ao âmbito militar, mas refletem uma lógica mais ampla das tecnologias contemporâneas da vigilância, percepção e controle. São sistemas e tecnologias como o Predpol[1]utilizado pela polícia estadunidense para previsão de crimes; o uso emergente de sistemas de reconhecimento facial estatal para vigilância massiva das populações – como o controverso e nebuloso caso chinês; os sistemas autônomos e ubíquos de vigilância em tempo real por imagem utilizados nos drones, como o ARGUS-IS; as técnicas e princípios da Análise Preditiva (Predictive Analysis) aplicada aos âmbitos corporativo, financeiro, securitário ou da saúde; a tática militar da Inteligência Baseada em Atividade; os algoritmos da Inteligência Artificial (Artificial Intelligence) e do Aprendizado Maquínico (Machine Learning).

 

A Inteligência Baseada em Atividade (ABI, em inglês) é uma tática de abordagem militar do exército estadunidense durante a Guerra ao Terror, operacionalizada a partir da integração de dados cronoespaciais de múltiplas fontes para identificar padrões e anomalias. A denominação surge a partir de uma declaração de Donald Rumsfeld em resposta a uma pergunta sobre a falta de evidência que ligava o governo de Saddam Hussein a armas de destruição em massa: “Como nós sabemos, há conhecidos conhecidos; Há coisas que sabemos que sabemos. Também sabemos que existem desconhecidos conhecidos; isto é, sabemos que há algumas coisas que não sabemos. Mas também há desconhecidos desconhecidos – aqueles que não sabemos que não sabemos”. Fonte imagem: The Intelligencer Journal.

 

 

Linhas de fuga

A pergunta que parece emergir insistentemente nas investigações que têm se debruçado a pensar o desenrolar histórico dos regimes da vigilância contemporânea é quais seriam as linhas de fuga que definiriam as sociedades do capitalismo tardio e que seriam capazes de escapar ou subverter as lógicas vigentes. É possível fugir à captura? Quais as heterotopias (FOUCAULT, 2001; 2011) capazes de ao mesmo tempo desordenar e evidenciar as categorias definidoras dos nossos tempos?

Talvez Stengers & Debaise (2016) e Parisi (2016) ofereçam algumas pistas tecnopolíticas e epistemológicas. Para Parisi a resposta estaria num modo de subjetivação que funcione como uma linha de fuga e estratégia de subversão das categorias epistemológicas do aprendizado maquínico e da governança do algoritmo, a partir de sua própria lógica instrumental. É o que a autora chama de “desconhecidos desconhecidos” (unknown unknowns), categoria proveniente das táticas da Guerra ao Terror pós 11 de setembro e para a qual defende uma reapropriação e repolitização através de uma “instrumentalidade biopolítica” (Figura 2). Junto com Stengers & Debaise (2016) [2], ao invés de sucumbir à lógica do controle, ao positivismo dos dados e à paranóia do algoritmo, Parisi sugere que abracemos o possível em detrimento do provável. Transmutar o desconhecido em templo, não mais da precisão preditiva, mas do reencontro com o incerto, poderia funcionar assim como um modo de delirar possíveis que escapem à captura e ao controle.

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Notas

O presente texto é um excerto do projeto de tese de doutorado intitulado Da totalização do controle ao desconhecido: uma análise dos sistemas e tecnologias orientados ao reconhecimento inteligente de imagens e à previsão, em desenvolvimento pela autora no âmbito do PPGCOM UFRJ e do MediaLab.UFRJ.

[1] http://www.predpol.com/

[2] Numa das notas do citado texto, os autores esclarecem: “We can never be too prudent when faced with the risk of confusion between the sense of the possible and the reference to the probable, which must be distinguished as different in nature. By definition the probable has to do with a transposition or a rearrangement of what has already taken place or what is ongoing, as shown by the calculation of probabilities. The probable belongs to a logic of conformity: that which was important in the past, making it possible to characterise it, will preserve this importance in the future. The possible, however, makes important the possible eruption of other way of feeling, thinking, acting, which can only be envisaged in the form of an insistence, undermining the authority of the present as regards the definition of the future.”

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Bibliografia

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura – 8. ed – São Paulo: Brasiliense, 2012. 271 p.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas, Cómo llevar el mundo a cuestas? Catálogo da Exposição do Museu Nacional Rainha Sofia. Madrid Museu Nacional Rainha Sofia, 2010. 421 p.

FOUCAULT, Michel. Las palabras y las cosas. Buenos Aires: Siglo Veinteuno Editores. 2011. 400 p.

FOUCAULT, Michel. Outros espaços, in: Ditos e escritos. Vol. 3.  Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. pp. 411-422.

PARISI, Luciana. The Incomputable and the Instrumental Possibility. E-flux journal, n. 77, 2016. Disponível em: <https://www.e-flux.com/journal/77/76322/the-incomputable-and-instrumental-possibility>.

PASQUINELLI, Matteo. Anomaly Detection: The Mathematization of the Abnormal in the Metadata Society. Painel apresentado no Transmediale Festival, Berlin, 2015. Disponível em: <http://www.academia.edu/download/37642065/Pasquinelli_Anomaly_Detection.pdf>.

SHOSHANA, Zuboff. The age of surveillance captalism: the fight for a human future at the new frontier of power. Nova Yorke: PublicAffairs, 2019.

STENGERS, Isabelle; DEBAISE, Didier. The Insistence of Possibles: Towards a Speculative Pragmatism. Parse: Journal Issue #7 Speculation, p. 12-19, 2017. Disponível em: <http://parsejournal.com/article/the-insistence-of-possibles%E2%80%A8-towards-a-speculative-pragmatism/>.

WANG, Jackie. “This is a Story About Nerds and Cops”: Predpol and Algorithmic Policing. E-flux journal, n. 87, 2017. Disponível em: <https://www.e-flux.com/journal/87/169043/this-is-a-story -about-nerds-and-cops-predpol-and-algorithmic-policing/>