#Dobras 33 // A matriz católica do anticomunismo brasileiro: o papel das Cartas Encíclicas

4 de junho de 2019

Por Wilson Milani*

 

Nota: O presente texto é um excerto da tese Vigilância e repressão sobre a imprensa operária carioca no século XX: o caso das gráficas do PCB, que vendo sendo desenvolvida pelo autor no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ. Para uma apresentação geral da pesquisa, ver #Dobra 1.

 

Marcha da Família com Deus pela Liberdade na região central de São Paulo. 25/03/1964. Foto: Arquivo/AE

 

São três as matrizes que compõem o anticomunismo no Brasil: catolicismo, nacionalismo e liberalismo. Diferentes entre si, encontram no repúdio às ideias comunistas – espécie de inimigo comum – um ponto de convergência programática.

A Igreja Católica via os comunistas como inimigos irreconciliáveis, uma vez que eles faziam parte de uma longa tradição devotada a pôr fim ao catolicismo. Tratava-se do antagonista mais recente que, assim como os anteriores, também seria derrotado, numa clara manifestação do poder dos seguidores de Cristo. Em um trecho da obra A Igreja e o marxismo (1949), o padre Cabral explicita essa ideia:

Contra a Igreja, no decurso dos séculos, se levantaram a Sinagoga, o Império Romano, o Arianismo, os Bárbaros, a Renascença, a Reforma Protestante e a Revolução Francesa; todos esses inimigos foram vencidos, também o será o inimigo da undécima hora – o Comunismo Ateu. Aguardemos o soar da hora marcada pela Previdência.

Para as lideranças católicas, a revolução socialista seria uma espécie de desdobramento tardio da Reforma Protestante ocorrida no século XVI. De maneira resumida, isso significa dizer que a razão protestante, marcada pelo questionamento de noções como ordem e hierarquia, teria animado tanto iluministas quanto marxistas em seus propósitos.

Referência importante para a luta anticomunista são as publicações oficiais da Igreja – em especial, as Cartas Encíclicas elaboradas pelos papas e dirigidas a bispos e cardeais. A primeira delas a mencionar o “perigo comunista” foi publicada em 1878, exatos trinta anos depois do Manifesto Comunista vir a lume. Intitulada Quod Apostolici Muneris, a encíclica do Papa Leão XIII ainda não sabe muito bem como nomear o inimigo – o chama ora de socialistas, ora de niilistas, ora de comunistas – e traz como principal recomendação a fundação de “sociedades de artificies e operários” sob o comando direto da Igreja.

Valendo-se desse tipo de organização, as lideranças católicas poderiam “disputar” as classes trabalhadoras com os revolucionários, ensinando-as a suportar com resignação as agruras do ofício. Num dado ponto do documento, a recomendação de afastar os fiéis do projeto comunista, visto como uma “seita”, se explicita: “É necessário (…) que trabalheis para que os filhos da Igreja Católica não ousem, seja debaixo de que pretexto for, filiar-se na seita abominável, nem favorecê-la (…)” (LEÃO XIII, 1951, pp. 14 e 15, grifo nosso).

O Papa Leão XIII voltou ao tema novamente em 1891, em uma nova encíclica (Rerum Novarum), que, desta vez, reconhecia que somente o trabalho da Igreja não seria suficiente para combater o avanço dos seguidores de Marx e Engels. O Papa cobra do Estado medidas concretas como a proteção da propriedade, o impedimento da realização de greves, a limitação da jornada de trabalho, a prática do salário justo para os operários, entre outras medidas (LEÃO XIII apud DE SANCTIS, 1972, p. 28).

A ideia de criar “corporação de operários católicos” é novamente reforçada na encíclica de 1891. A Rerum Novarum apostava então que o combate ao comunismo passava menos por medidas repressivas e mais pela diminuição da pobreza por meio de implementação de programas sociais.

Já no século XX, em 1937, ocorre a publicação da encíclica Divinis Redemptoris. Editada pelo Papa Pio XI, o documento reflete o contexto da guerra civil entre republicanos e franquistas que ocorria naquele momento na Espanha. Era de esperar, portanto, que o documento apresentasse forte teor anticomunista. O pontífice reforça a necessidade da Igreja e do Estado atuarem em temas ligados à justiça social, estreitando assim o campo de atuação dos comunistas. Ele defende ainda os valores cristãos de justiça e igualdade e fala em “colaboração de classes” como condição necessária para a “paz social”.

Motta (2000, p. 41), que também analisou a encíclica em sua tese, afirma que “enquanto em documentos anteriores prevalecia uma postura preventiva, Pio XI constata que o ‘estrago’ causado pelos comunistas já era considerável (…) e a luta agora seria menos de prevenção e mais de reação”. Eis o que diz exatamente Pio XI (1938, pp. 45 e 46): “Intrinsicamente mau é o comunismo e não se pode admitir, em campo algum, a colaboração recíproca, por parte de quem quer que pretenda salvar a civilização cristã”. Aqui, o comunismo é identificado com algo “intrinsicamente mau”, necessitando ser prontamente repelido pelos fiéis católicos.

A publicação da Divinis Redemptoris, que procurou de algum modo responder às violências físicas e simbólicas infringidas a Igreja Católica durante o conflito espanhol, coincidiu com os primeiros anos de propaganda anticomunista desencadeada logo após os acontecimentos de 1935 no Brasil. Nesse contexto, os adversários locais do PCB passaram a se alimentar de argumentos oriundos da Espanha, país de forte tradição católica.

A campanha mundial contra o comunismo encampada pela Igreja tratou de destacar o que se passava na Espanha conflagrada. Dizia um determinado trecho da encíclica Divinis Redemptoris, editada pelo Papa Pio XI:

Onde quer que os comunistas conseguiram radicar-se e dominar, aí, como eles próprios abertamente o proclamam, por todos os meios se esforçaram por destruir radicalmente os fundamentos da religião e da civilização cristãs, e extinguir completamente a sua memória no coração dos homens, especialmente da juventude. Bispos e sacerdotes foram desterrados, condenados a trabalhos forçados, fuzilados ou trucidados de modo desumano; simples leigos tornados suspeitos por terem defendido a religião, foram vexados, tratados como inimigos, e arrastados aos tribunais e às prisões.

No âmbito nacional, as Cartas Encíclicas do Vaticano eram reinterpretadas pelos bispos locais, responsáveis por elaborar outro tipo de documento de caráter doutrinário, as Cartas Pastorais. Direcionadas a dioceses, essas Cartas repercutiam diretamente no público leigo que frequentava as igrejas. Seu conteúdo era lido e explicado aos fiéis durante as mais variadas celebrações religiosas que ocorriam no país. Além disso, as mensagens episcopais serviam de referência para o trabalho religioso e político em geral.

Registra-se ao menos sete Cartas Pastorais dedicadas à luta anticomunista no Brasil.

(continua)

//

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). 315 páginas. Tese defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2000.

//

*Pesquisador do MediaLab.UFRJ, Wilson Milani é doutorando em Comunicação e Cultura pela UFRJ.