#Dobras 40 // Mark Zuckerberg não entende liberdade de expressão no século XXI

19 de novembro de 2019

Nesse texto para o The Guardian US, Siva Vaidhyanathan, professor de estudos de mídia da Universidade da Virginia e autor de Antisocial Media: Como o Facebook nos desconecta e prejudica a democracia (2018), comenta o discurso de Mark Zuckerberg para alunos de graduação na Universidade de Georgetown. Um texto necessário e crítico sobre o manifesto do Facebook sobre liberdade de expressão e democracia.

Original: The Guardian US, 18 de outubro de 2019. Tradução: Lori Regattieri

 

Imagem: Erin E. McCarthy

 

 

As ideias nada sofisticadas de Zuckerberg sobre liberdade de expressão geraram ummanifesto que só pode ser chamado de incoerente.

Por toda sua vida adulta, CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, tem sido capaz de sobrar em arrogância o que lhe falta em educação. Ele continuou essa tendência na quinta-feira,enquanto falava com estudantes da Universidade de Georgetown, em Washington DC, no que foi anunciado como um grande manifesto sobre “liberdade de expressão”.

“Estou aqui hoje porque acredito que devemos continuar a defender a liberdade de expressão”, disse Zuckerberg, como se alguém além do crescente conjunto de ditadores autoritários argumentasse seriamente contra isso.

No entanto, o próprio Zuckerberg argumentou contra a liberdade de expressão em seu próprio discurso. Ele defendeu a prática do Facebook de remover ou impedir a circulação de material que ele considera nocivo, como pornografia e discurso de ódio.

Agora, essa é uma boa política (mesmo que falhe na prática), porque uma empresa deve fazer o que é bom para a empresa e seus usuários. Nenhum anunciante deseja ver sua marca associada ao pior que os seres humanos podem produzir.

Os pensamentos pouco sofisticados de Zuckerberg sobre liberdade de expressão geraram um manifesto que só pode ser chamado de incoerente. Não é de surpreender que os regulamentos de conteúdo do Facebook sejam incoerentes no design e na prática.

Imagine o quão ofensivo deve ter sido para centenas das mentes mais brilhantes dos EUA,muitas das quais consideraram profundamente a história do direito constitucional americano e as maneiras como influencia a democracia, sentar-se educadamente e ouvir o bilionário que parece ter mal conseguido ler um livro sobre o assunto e parece que não consegue formar uma linha de argumentação clara.

O manifesto acabou sendo um fraco ensaio de graduação que ganharia no máximo um B- de qualquer professor universitário. Zuckerberg delineou um histórico condescendente e incompleto da expansão do discurso legal nos Estados Unidos, aplicando-o mal a sua própria empresa privada global (como se uma limitação à capacidade do Estado de censurar tivesse algo a ver com o que qualquer empresa pode ou deve fazer ), e ofereceu a superficialidade mais rasa sobre o valor de duas de suas frases favoritas: “dar voz a mais pessoas” e “aproximar pessoas”.

O discurso foi principalmente uma remontagem de muitos de seus discursos recentes,invocando sua missão de dual de promover essas duas sentenças-chave. O que era novo não era interessante. O que era interessante não era novo.O discurso era tão fraco e mal estruturado que não poderia ter servido como pior evidência em um argumento sobre o valor do discurso em si. O evento teria sido muito mais valioso para Zuckerberg e seu público se os estudantes de políticas públicas de Georgetown otivessem ensinado sobre a história e o valor da liberdade de expressão. Afinal, eles sabem das coisas e são treinados para pensar e escrever com clareza.

Mas eis o seguinte: Zuckerberg não estava errado. Ele simplesmente não conseguia articular o porquê. O mundo está melhor agora do que há dois séculos atrás, principalmente porque mais pessoas podem se expressar efetivamente sem medo de morrer ou serem torturadas. Está melhor porque as comunidades racionais como as dos cientistas e advogados podem argumentar francamente sobre o que é verdadeiro e importante. Poderosas tecnologias recentes permitiram às pessoas encontrar, organizar e motivar umas às outras e, assim,exercer influência de maneiras novas e surpreendentes (embora frequentemente perturbadoras e violentas). Mas esses pontos são banais. No entanto, Zuckerberg os descreve como se fossem profundos.

Zuckerberg conseguiu abordar algumas das recentes controvérsias que as políticas de sua empresa geraram, mesmo que obliquamente.

Criticado amplamente, mais agressivamente pela candidata presidencial Elizabeth Warren,por decidir não remover anúncios políticos obviamente enganosos nos Estados Unidos, Zuckerberg defendeu a decisão com falsa modéstia. “Não acho certo que uma empresa privada censure políticos em uma democracia”, disse ele.

Essa não é uma posição ruim a ser adotada, mesmo que oculte dois fatos principais: o Facebook é excepcionalmente poderoso no mundo, estruturando o mundo social e do conhecimento de quase 2,5 bilhões de pessoas; e o Facebook é espetacularmente inconsistente (se não incompetente) em aplicar suas próprias políticas.

Zuckerberg nunca reconheceu que o Facebook é grande demais para governar ou reformar.Mesmo considerando apenas a publicidade política nos Estados Unidos (e ignorando todos os outros conteúdos enviados por usuários, grupos e anúncios no resto do mundo), o Facebook teria que patrulhar centenas de milhares de anúncios de campanhas em todos os níveis de governo. Não pode fazer isso. Ninguém poderia.

Um forte argumento para o Facebook abster-se de julgar as alegações verdadeiras de anúncios políticos começaria com o reconhecimento de sua incapacidade de fazer algo tão matizado em escala. Um anúncio de Trump sobre Joe Biden é fácil. Milhões de anúncios políticos de todo o mundo não são evidentemente enganosos.

Zuckerberg gosta de reivindicar todos os grandes benefícios da Internet como seus. Ele frequentemente confunde o Facebook com a Internet, mesmo que um sistema comercial fechado seja exatamente o que a internet não deveria ser. Assim, enquanto se vangloria dos efeitos esclarecedores da disseminação de conhecimento e informação, ele ignora os atributos tóxicos de sua própria empresa.

O Facebook possui três atributos definidores que fazem do Facebook o Facebook. Sua escala de 2,4 bilhões de pessoas carregando conteúdo em mais de 150 idiomas o torna muito grande para filtrar. Seu design algorítmico que amplia o conteúdo avaliado para atrair atenção e interação (cliques, compartilhamentos, curtidas, comentários) favorece o extremismo e emoções poderosas sobre expressões racionais e medidas. E o sistema de publicidade barato e eficaz é monumentalmente lucrativo e, portanto, acabando com outras fontes de boas informações da receita necessária.

Em seu discurso na quinta-feira, Zuckerberg se gabou de que o movimento Black LivesMatter começou no Facebook. Sim. Mas também quase morreu lá. Ele pulou para o Twitter e prosperou. Como o estudiosa da internet Zeynep Tufekci explicou, o sistema algorítmico do Facebook reprimiu #BlackLivesMatter e outros movimentos ativistas ao promover imagens insípidas como o Ice Bucket Challenge. No Twitter, com design de amplificação algorítmica muito mais leve, o #BlackLivesMatter poderia prender a atenção.

Zuckerberg também negligenciou o fato de que o maior grupo de Black Lives Matter do Facebook era hospedado por um homem branco da Austrália e, de outra forma, era completamente falso.

Zuckerberg quer que acreditemos que é preciso ser a favor ou contra a liberdade de expressão sem nuances, complexidade ou especificidade cultural, apesar de administrar uma empresa que está se afogando em complexidade. Ele quer que nossas discussões sejam as mais abstratas e idealistas possível. Ele quer que não olhemos de perto para o próprio Facebook.

Por ser um ator tão importante no jovem século 21, Zuckerberg adota uma visão ultrapassada do discurso do século XIX. Para ele, existe na verdade algo como um mercado de ideias através do qual as melhores ideias prevalecem quando encontramos evidências e argumentos. O problema é que o Facebook mina qualquer tentativa de sustentar essa prática.

Resolvemos em grande parte o desafio do século XIX. Até 2019, conseguimos oferecer à maioria das pessoas no mundo uma plataforma de expressão e uma ferramenta para comunicação humana constante e acessível. Em grande parte do mundo, o discurso permanece fora do alcance do controle estatal. Tudo bem, exceto que cria um novo problema que ainda temos que enfrentar.

O problema do século XXI é a cacofonia. Muitas pessoas estão gritando ao mesmo tempo.Atenção fraturada. Paixões emergentes. Os fatos desmoronam. É cada vez mais difícil deliberar profundamente sobre questões cruciais complexas com um público informado.Temos acesso a mais conhecimento, mas não podemos pensar e falar como adultos sobre coisas sérias.

Ao invocar todos os movimentos sociais progressistas que consideraram o Facebook útil,Zuckerberg tenta atrelar sua empresa aos resultados. Mas ignorando os nazistas e misóginos que também usam o Facebook para organizar e recrutar, ele espera que equiparemos motivação com liberdade de expressão e democracia.

O fato é que uma democracia próspera precisa mais do que motivação, capacidade de encontrar e organizar pessoas com ideias semelhantes. As democracias também precisam de deliberação. Deixamos cair as instituições que fomentam a discussão entre pessoas bem informadas e com ideias diferentes. Em breve, tudo o que restará será o Facebook. Veja Mianmar para ver como isso funciona.

Siva Vaidhyanathan é professor de estudos de mídia na Universidade da Virgínia e autor de Antisocial Media: Como o Facebook nos desconecta e prejudica a democracia. Ele também é colunista do Guardian nos EUA.