//O que o fim da nuvem ilimitada do Google for Education tem a ver com o colonialismo digital?

11 de junho de 2021

Por Joana de Medina

Há cerca de 5 anos o Google passou a oferecer como recurso para instituições de ensino do mundo todo o armazenamento gratuito e com espaço ilimitado na nuvem da empresa. Em 2021, no entanto, as escolas, universidades e outras instituições que fecharam parceria com o Google pelo chamado Google for Education receberam o aviso de que o armazenamento ilimitado na nuvem, recurso fundamental, especialmente em tempos de ensino remoto, será encerrado em julho de 2022. A partir de então, cada instituição contará com 100TB de armazenamento compartilhados entre todos seus usuários. O motivo alegado para o cancelamento do serviço foi o mau uso da ferramenta: “o armazenamento não vinha sendo utilizado de forma otimizada, e os gestores das instituições nem sempre possuíam as ferramentas necessárias para administrar essa questão”, justifica o Google.

Recentemente aconteceu outro caso semelhante. Em 2015 o Google lançou o “Google Fotos”, serviço em que um dos principais recursos era o espaço ilimitado para armazenamento de fotos e vídeos. Em novembro de 2020 a empresa anunciou que daria fim ao upload ilimitado na plataforma, decisão vigente desde 1º de junho, quando o upload de novas fotos e vídeos passou a integrar os 15GB gratuitos que vem com qualquer conta padrão do Google. Além disso, as fotos que antes foram compactadas como fotos de “alta qualidade” passaram a ocupar também os 15GB de armazenamento. O Google também informou que caso a cota de armazenamento do usuário seja ultrapassada e permaneça assim por 24 meses o conteúdo pode ser afetado, podendo inclusive ser apagado. O que se percebe por meio desses casos do Google é uma tendência de se oferecer um serviço gratuito, atrair uma quantidade expressiva de usuários desenvolvendo uma relação de dependência em relação ao serviço e depois cobrar pelo que antes não tinha custo.

Segundo a reportagem do site TecMundo, na Universidade de São Paulo (USP) 95 mil contas estão ligadas ao Google for Education. Ou seja, com a mudança anunciada, cada usuário, dentre professores, estudantes e técnicos administrativos, passará a ter pouco mais de 1GB de armazenamento. Outro serviço que a Universidade de São Paulo utiliza desde 2017 é a plataforma USP-Google de hospedagem e serviços de e-mail com mecanismos semelhantes aos do Gmail customizados para a Universidade. Em 2016, a USP calculou que cerca de 6 milhões de reais seriam economizados por ano com a parceria fechada com a Google, considerando o custo relativamente alto para manter serviços de armazenamento em nuvem. Já a Universidade Federal Fluminense (UFF) tinha, até o final do mês de abril de 2021, mais de 110 mil usuários com acesso aos serviços do Google e ao armazenamento ilimitado. Com a nova regra, cada um desses usuários terá menos de 1GB de armazenamento para usufruir. Helcio Rocha, diretor da Superintendência de Tecnologia da Informação (STI) da UFF, destacou um ponto importante em conversa com o site TecMundo: com a pandemia, as tecnologias aplicadas ao ensino produzem muito material digital (textos, vídeos, imagens e áudios), e isso requer ainda mais espaço do que era habitual com o ensino presencial.

Com a crise instaurada a partir da pandemia do COVID-19 muitos gestores recorreram aos serviços do Google buscando garantir o acesso dos estudantes ao ensino na modalidade remota. Além das facilidades que o Google oferecia com o “Workspace for Education”, suas ferramentas são das mais familiares, o que é conveniente para professores e alunos. A possibilidade de centralizar em uma única plataforma as atividades de ensino também foi um fator importante. Por todos esses fatores, o Google figurou como uma opção providencial num momento de incerteza e fragilidade institucional e é justamente esses momentos que as grandes empresas de tecnologia aproveitam para se embrenhar nas instituições públicas. Não surgiu agora o investimento das empresas de tecnologia informacional no campo da educação, mas isso certamente se consolidou e se expandiu no contexto da pandemia com a difusão do ensino remoto e a intensificação do nosso convívio em ambientes virtuais por elas mediados.

A pesquisa Educação Vigiada, produzida pela Iniciativa Educação Aberta com apoio da ONG Derechos Digitales e da Rede Lavits, aponta que mais de 65% das instituições públicas de educação no Brasil analisadas adotam algum serviço das 5 grandes corporações representadas pelo acrônimo GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft). Os pesquisadores chamam atenção à estratégia dessas corporações de oferecer serviços gratuitos ou a baixo custo para fidelizar grandes grupos de pessoas à sua infraestrutura de extração de dados, como vimos com o Google for Education e o Google Fotos. Ao fechar acordos com essas empresas, nossas instituições ficam expostas ao “capitalismo de vigilância”, conceito popularizado por Shoshana Zuboff em referência ao modelo de negócios das Big Techs, baseado na ampla extração de dados dos usuários de plataformas digitais e no armazenamento, processamento e análise desses dados. Nossas ações dentro das plataformas são traduzidas em dados comportamentais e assim a experiência humana é transformada em matéria-prima gratuita por essas empresas. 

Quando tomamos como exemplo as instituições de ensino, em especial as públicas — e sabendo que a contrapartida oculta da oferta de um serviço informacional gratuito é a coleta, o tratamento e a comercialização de dados comportamentais dos usuários — temos uma quantidade imensa de informações sendo, de certa forma, cedidas a essas corporações enquanto bancos de dados colossais e estratégicos. 

Essa dinâmica está relacionada ao que autores como Ulises Mejias, Nick Couldry e Abeba Birhane vêm chamando de colonialismo digital ou colonialismo algorítmico: a crescente expropriação dos fluxos da vida para sua conversão em dados visando o lucro das Big Techs. Ao invés da dominação por força bruta, como no colonialismo tradicional, esse modelo visa, sobretudo, o controle do ecossistema e da infraestrutura digitais. 

No caso em questão, tais infraestruturas processam informações cruciais para as políticas públicas educacionais do Brasil. Mas não é só aqui que essa dinâmica é observada. Os resultados preliminares da pesquisa Educação Vigiada, que comentamos anteriormente, apontam que outros países da América do Sul passam por situações semelhantes: na Colômbia 95% das universidades públicas analisadas tem seus serviços institucionais de e-mail hospedados em servidores do Google ou da Microsoft; na Venezuela 44% das universidades públicas pesquisadas hospedam seu serviço de e-mail em servidores do Google. Esses resultados reforçam a geopolítica da colonização quando percebemos que empresas de países ricos e hegemônicos do chamado norte global enriquecem às custas da América do Sul através do extrativismo de dados. Uma pesquisa realizada pelo MediaLab.UFRJ em parceria com a Derechos Digitales, parte de um estudo comparado latinoamericano,  identificou um padrão similar no caso de implementação de ferramentas de Inteligência Artificial para intermediação de mão de obra no Sistema Nacional de Emprego, fruto de uma parceria entre o governo federal e a Microsoft.

O caso do fim da nuvem ilimitada do Google Education revela, além da dependência das universidades públicas em relação aos serviços do Google, parte da dinâmica do novo colonialismo das Big Techs e sua articulação com o capitalismo de vigilância. As GAFAM se infiltraram nas nossas instituições públicas, inclusive nas governamentais (como secretarias de educação e prefeituras), situação que se intensificou com a pandemia de COVID-19. O fim da nuvem ilimitada pode ser um disparador para considerarmos a urgência dessas instituições retomarem o controle e a autonomia em relação ao fluxo de dados que produzem.