#ESTAMOSLENDO_5 // O CALIBÃ E A BRUXA, SILVIA FEDERICI

15 de julho de 2021

#EstamosLendo Silvia Federici - O Calibã e a Bruxa

Por Mariana Antoun

O Ocidente precisou de uma pandemia para trazer a sobrecarga gerada pelo trabalho doméstico às mulheres para as conversas familiares e discussões públicas. Também acendeu o debate em países como o Brasil sobre o papel da terceirização deste trabalho, delegado a mulheres, pretas, pobres, imigrantes. Há quase 50 anos, esse é, no entanto, um dos temas centrais de Silvia Federici. O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago, escancara a autora de “O Calibã e a bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva”, livro lançado em 2004 e a primeira obra de Federici traduzida para o português, em 2018 (e disponível para download gratuito). 

Federici é uma filósofa e militante italiana, feminista, radicada nos Estados Unidos, que na década de 70 integrou o grupo de mulheres que passou a defender a remuneração do trabalho doméstico na campanha internacional Wages For Housework (WFH). Recentemente o The New York Times  afirmou que Federici é uma das mais influentes pensadoras feministas socialistas do último século. Ela prefere ser chamada de anticapitalista mesmo. 

Ao apresentar uma genealogia do papel da mulher, do trabalho doméstico e do trabalho reprodutivo na acumulação primitiva de capital, “a tarefa que Calibã e a bruxa se propôs realizar foi a de escrever a história esquecida das “mulheres” e da reprodução na “transição” para o capitalismo” (FEDERICI). Ao recontar a história sob essa nova perspectiva, a autora se propõe a repensar todo o processo de formação do capitalismo. Nesse percurso, ela revisita a caça às bruxas per si, mas também como ela está entrelaçada com a ascensão da família nuclear, a expulsão do campesinato europeu de suas terras comunitárias (“bens comuns”), a apropriação da capacidade reprodutiva das mulheres pelo Estado, a cristianização da América e o processo de transformação do corpo proletário em máquina de trabalho. 

Lançando luz não apenas ao trabalho doméstico, mas também ao encarceramento dos corpos femininos na propriedade privada, a obra de Federici reposiciona a história da transição para o capitalismo sob a perspectiva das mulheres e ajuda a pensar as tecnopolíticas de gênero não apenas historicamente, como também no campo teórico. A caça às bruxas no fim da Idade Média é apresentada como instrumento de extermínio de mulheres e de domesticação de seus corpos pelo horror e medo. Esse modelo de extermínio se repete nas colônias e na domesticação dos povos originários das colônias e escravizados africanos. “O que o livro faz é identificar certos padrões que não mudaram”, disse a própria Federici no lançamento da obra no Brasil.

Federici, com seus cinquenta anos de pesquisa e militância, aponta neste livro lacunas em pensadores como Karl Marx e Michael Foucault, que na visão dela subestimam o papel das mulheres em suas principais formulações, ao não considerarem o trabalho doméstico e reprodutivo na acumulação primitiva de capital (Marx) e no conceito de biopoder (Foucault). Ambos, respectivamente, amplamente utilizados nas discussões sobre estágios do capitalismo, sobre vigilância e controle, sobre corpo e gênero. 

Para quem se interessa sobre o tema e o trabalho da italiana, em entrevista à revista DR Federici fala um pouco sobre as estratégias históricas das mulheres de resistência e busca de autonomia sobre o próprio corpo. Coordenado pela professora Carla Rodrigues, do laboratório Tempo do Agora (PPGF/UFRJ),  está em andamento o curso “Como pensar o fim com Sivia Federici”, no qual pesquisadoras convidadas articulam a obra de Federici com suas pesquisas individuais. O curso está sendo disponibilizado no Youtube

#EstamosLendo é uma seção do blog do laboratório que publica pequenas resenhas de livros e artigos que integram pesquisas individuais ou coletivas do MediaLab.UFRJ. Clique aqui para conferir as demais resenhas.