Dobras #49 // O algoritmo no campo ampliado: estratégias lógico-sequenciais para além das Big Techs

20 de agosto de 2021

Por Ícaro Ferraz Vidal Júnior*

 

Na última década, assistimos a uma espécie de colonização da internet por plataformas e apps. Neste contexto, as mediações algorítmicas tornaram-se cada vez mais evidentes, ingressaram no vocabulário não-especializado e se tornaram protagonistas de diversos produtos da cultura pop: de memes com a frase “não fui eu, foi o algoritmo” a livros, filmes e séries de ficção científica, extremamente populares. Hoje, é grande a probabilidade de que a primeira associação feita por alguém que ouça o termo algoritmo tenha a ver com as redes sociais ou com sites de compras online. Algoritmo cósmico[1]Algoritmo cósmico pode ser acessado em www.algoritmocosmico.com até o dia 4 de setembro de 2021., projeto curatorial comissionado pela Zipper Galeria, em São Paulo, partiu da suspeita de que o conceito de algoritmo tem sido reduzido a um jargão dos sistemas de recomendação e filtragem das plataformas online, tendo seus fundamentos lógico-filosóficos e suas modulações históricas e culturais negligenciados.

O projeto nasce desta suspeita, não de uma hipótese plenamente formulada. Por conta de seu caráter curatorial, que prevê um processo colaborativo de criação, baseado em obras e projetos artísticos preexistentes, cujas singularidades devem ser respeitadas, o projeto não tem a assertividade de um ensaio ou artigo acadêmico. A seleção das obras não teve por objetivo ilustrar um argumento ou verificar uma hipótese. Apenas a partir da pesquisa, da reunião e da organização dos trabalhos – muito heterogêneos, tanto no que concerne a técnicas e linguagens empregadas, quanto a geração e proveniência de seus autores –, foi possível formular o argumento que alinhava Algoritmo cósmico como um percurso que se inicia de modo lógico e abstrato e vai ganhando corpo e materialidade até chegar no último núcleo de obras, que flerta com elementos transcendentais, de ordem mística e oracular.

Embora este percurso não existisse antes da pesquisa e das conversas com alguns dos artistas, algumas referências teóricas foram fundamentais para encaminhar esta ideia de um padrão lógico-sequencial imaginário, acessível a partir dos diferentes estratos e escalas que compõem nossa experiência do mundo. A ideia de ordem de grandeza, emprestada da filosofia da individuação de Gilbert Simondon[2]SIMONDON, G. A individuação à luz das noções de forma e de informação. São Paulo: Editora 34, 2020., desempenhou um papel fundamental para pensarmos o algoritmo neste campo ampliado, juntamente com as pesquisas de Ilya Prigogine em torno das leis do caos[3]PRIGOGINE, I. As leis do caos. São Paulo: Editora UNESP, 2002.  e com as teses de Lorraine Daston e Peter Gallison sobre a história da objetividade a partir da produção científica de imagens[4]DASTON, L.; GALISON, P. Objectivity. Nova York: Zone Books, 2010.. Mas quem visitar o site não encontrará nenhuma dessas referências explicitadas textualmente, uma vez que o texto que conduz o visitante pelas obras foi concebido como uma espécie de visita guiada e, neste sentido, teve por objetivo descrever os trabalhos, mais do que interpretá-los à luz desta ou daquela teoria.

Mas além da presença virtual destas leituras na forma que o projeto acabou assumindo, alguns dos gráficos e imagens presentes nestas obras, notadamente na de Prigogine e na de Daston e Galison, foram incorporadas na identidade visual do projeto, concebida por Laís Sambugaro a partir da ideia que tivemos de borrar as fronteiras entre as imagens artísticas e científicas. As famosas ilustrações do splash de uma gota publicadas por Arthur Worthington em 1877 foram animadas no vídeo de divulgação do projeto; e uma representação gráfica dos polinômios de Bernoulli, empregada por Prigogine no desenvolvimento matemático de sua hipótese de que o caos pode ser inserido nas leis da natureza, relacionado a noções de probabilidade e irreversibilidade, compôs a vinheta de abertura do site, juntamente com uma imagem impressionante do fluxo de elétrons em duas dimensões, que circulou no começo do século XXI entre páginas de importantes revistas científicas e exposições e galerias de arte.

Embora o projeto tenha partido de uma certa resistência a encarar o algoritmo a partir de um domínio estritamente tecnopolítico, algumas das obras apresentadas dialogam diretamente com este campo, mas o fazem se esquivando de uma leitura centrada na economia política das Big Techs e criando tensões a partir de outros campos da cultura. A seguir, irei apresentar e comentar cinco obras da exposição, selecionadas justamente por subverterem algumas lógicas e operações algorítmicas que, no âmbito da crítica tecnopolítica (a partir da qual penso grande parte de minha própria produção), aparecem frequentemente destituídas de seus lastros históricos e culturais, dado o compromisso de tal crítica com a compreensão e desarticulação dos valores neoliberais que desenham nossas interfaces e cafetinam nossos dados. 

Ao acessar o site do projeto, após breve introdução, o visitante é apresentado à obra Se contar ninguém acredita (2017), de André Azevedo, que pode ser entendida como uma epígrafe visual do projeto. Este trabalho cria uma ponte com uma tradição da arte conceitual que, a partir dos anos 1970, viu nos cartões perfurados e nas interfaces dos primórdios da computação um campo privilegiado para a experimentação artística utilizando estratégias construtivas. Esta obra de Azevedo pertence a uma série feita com datilografia sobre tecido de algodão, suporte que evoca os estreitos vínculos entre o desenvolvimento da computação e a automação da indústria têxtil. Além disso, a composição brinca com a tradição da poesia concreta e com a polissemia do verbo contar que, em português, significa quantificar, mas também relatar, narrar. A relação, ironicamente estabelecida pelo trabalho, entre crença e quantificação é mais uma camada do trabalho que nos permite pensar sobre as mutações contemporâneas nos regimes, tecnologicamente mediados, de produção de verdade.

 

Um outro trabalho que interessa retomar aqui é a pintura #2, da série Ledo engano (ou coisa parecida), de Felipe Cama. Em sua prática, Cama examina os processos contemporâneos de produção, circulação e consumo das imagens. Atualmente, o ecossistema midiático no qual os regimes de visualidade estão inseridos é predominantemente digital e algoritmicamente mediado. Nesse contexto, o artista produz uma pintura (acrílica sobre tela) na qual representa a interface da ferramenta safe colors de um famoso software de edição e tratamento de imagens digitais. A referida ferramenta promete reduzir a incerteza e a indeterminação na composição cromática das imagens digitais, tendo em vista a diversidade de monitores e impressoras através dos quais tais imagens serão visualizadas e impressas. O gesto do artista cria um curto-circuito entre a pesquisa cromática no campo pictórico e no campo da precisão digital, além de investir sobre um dos fenômenos mais fascinantes da psicologia da percepção, justamente devido à sua elevada margem de indeterminação em função de variáveis que incluem a corporeidade de nossa visão[5]CRARY, J. Técnicas do observador: Visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. e as condições luminosas, sempre em transformação.  

 

A mulher do tempo, de Luiza Crosman, é uma aula-vídeo-performance realizada originalmente na plataforma Zoom que também explora algumas tensões, caras à ciência e à cultura, entre indeterminação e previsibilidade. A artista apresenta uma história da meteorologia, descrevendo uma série de importantes transformações nas infraestruturas de previsão do tempo, originalmente limitadas à extração e tratamento de dados climáticos em nível local. A construção de um sistema capaz de registrar, armazenar e tratar dados climáticos em nível planetário é atravessada por questões de gênero, tecnológicas e ambientais, elaboradas pela artista através de uma engenhosa narrativa, ancorada em uma pesquisa iconográfica fascinante. A obra de Crosman aponta para a modelização climática como potencial catalisador de uma futura governança global. 

 

Thiago Hersan, em sua série Algotypes, se apropria de elementos que remetem ao universo esotérico, como pirâmides translúcidas e cristais. Os objetos produzidos por Hersan, tal como os esotéricos, atuam sobre um campo marcado pela invisibilidade mas, no caso do artista, esta invisibilidade não vem de nenhuma transcendência místico-religiosa, mas dos sinais de redes WiFi que, emitidos por roteadores e aparelhos celulares, atravessam grande parte dos espaços por onde circulamos e são captados pelos Algotypes. A relação estabelecida pelo artista entre a limpeza energética esotérica e os sinais de WiFi evidencia aspectos infraestruturais de nossos sistemas de comunicação sem fio, uma vez que a fonte destes sinais são bastante tangíveis: minerais e metais, cujas proveniências negligenciamos e que podem estar carregados das pesadas energias da indústria mineradora.  

 

Por fim, temos o Oráculo do Insta, de Nadam Guerra. Trata-se de um conjunto de pinturas produzido pelo artista a partir de um ritual que prevê a realização de uma pintura por dia durante o período de uma lunação. Em janeiro deste ano, com a lua nova em Capricórnio, o artista decidiu consultar o Oráculo do Instagram e publicou um vídeo e alguns stories convidando seus seguidores a enviarem imagens que seriam pintadas na ordem aleatória em que fossem chegando. Neste processo, o artista se apropriou das complexas e obscuras mediações algorítmicas que organizam nossos feeds na rede social como parte de um dispositivo oracular. Nas palavras do artista, esta experiência foi “como tirar cartas de um tarô comunitário”.

 

caro Ferraz Vidal Junior é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e em História da Arte pelas Université de Perpignan Via Domitia e Università degli studi di Bergamo, atualmente pesquisador visitante no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e colaborador do MediaLab.UFRJ.

References

References
1 Algoritmo cósmico pode ser acessado em www.algoritmocosmico.com até o dia 4 de setembro de 2021.
2 SIMONDON, G. A individuação à luz das noções de forma e de informação. São Paulo: Editora 34, 2020.
3 PRIGOGINE, I. As leis do caos. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
4 DASTON, L.; GALISON, P. Objectivity. Nova York: Zone Books, 2010.
5 CRARY, J. Técnicas do observador: Visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.