Dobras #50 // MBTI e os 16 tipos: Como as plataformas digitais popularizaram os testes de personalidade
2 de setembro de 2021Por Manuella Caputo e Larissa Pacheco*
É possível que você já tenha feito algum teste de personalidade em sua vida. Talvez, a primeira lembrança remonte aos testes das revistas impressas, que certamente já foram mais populares no passado. Hoje em dia, a chance de você ter respondido uma série de perguntas para descobrir mais sobre si mesmo(a) é maior ainda: esses testes estão em toda parte pela Internet. Falando sobre plataformas que já tiveram mais adeptos, no Facebook há aqueles aplicativos de teste de personalidade que se conectam a sua conta na rede social, e que foram uma verdadeira febre por lá. É inegável o quanto gostamos de fazer esses testes e da possibilidade de descobrir ou apenas confirmar características – geralmente positivas – sobre nós mesmos(as). Não à toa, foi um app de teste de personalidade que agiu como Cavalo de Tróia para capturar dados sem o consentimento dos usuários no escândalo do Facebook-Cambridge Analytica. O caso acabou acendendo o alerta para como outros testes semelhantes coletam os dados de nossos perfis nas redes sociais sem percebermos e de forma legal.
Seja um teste de aplicativo ou do Buzzfeed, um aspecto vital para a sua difusão é o compartilhamento nas redes sociais. Se gostamos do resultado que nos surpreende com as mais diversas qualidades, ou conclui que somos iguais a nossa personagem favorita da série que acabamos de assistir, fica fácil compartilhá-lo com nossos amigos nas redes sociais – via de regra, basta apertar o botão com o símbolo da rede e pronto. Mas a Internet nos permite ainda operar na lógica inversa: por causa do resultado do nosso teste de personalidade, podemos interagir e compartilhar com desconhecidos que obtiveram o mesmo resultado também.
Aqui, falaremos de um teste de personalidade em específico: o NERIS Type Explorer, mais conhecido pelo nome do site no qual está hospedado, o 16Personalities. O teste de 66 questões promete retornar com o seu tipo de personalidade e como ela influencia nas mais variadas áreas de sua vida. São 16 os tipos de personalidade possíveis – esse número é baseado em outro teste no qual a NERIS Analytics se inspira, o Myers–Briggs Type Indicator (MBTI). Apesar do MBTI ser mais antigo – são algumas décadas de diferença, uma vez que sua primeira versão foi publicada em 1962 –, o 16Personalities se tornou mais popular com a comunidade online, pois oferece o resultado nas mesmas tipologias de forma gratuita, enquanto não há qualquer forma de realizar o teste do MBTI original sem pagar.
Por esses motivos, nas páginas e comunidades online, os usuários se utilizam de seus resultados no 16Personalities para se referir aos seus tipos no MBTI. No 16Personalities, as 16 personalidades são divididas em 4 grupos: analistas, diplomatas, sentinelas e exploradores. O que significa também 4 cores diferentes para demarcar os grupos e este é um aspecto extremamente relevante para a popularidade do site: o design. Além da identificação dos grupos por cor, cada personalidade tem uma espécie de personagem ou avatar – o que tem contribuído imensamente para a fabricação dos memes sobre MBTI.
No Facebook brasileiro, o maior grupo sobre MBTI possui 42,9 mil membros. Por lá, a maioria das publicações compartilhadas são de memes sobre as 16 personalidades. Essas são identificadas por uma sigla (em inglês) que faz referência aos quatro atributos dominantes de um indivíduo: Extrovertido ou Introvertido; Intuitivo ou Observador; Pensante ou Sentimento; Julgador ou Explorador. O 16Personalities acrescenta mais um atributo à tipologia do MBTI, pois considera que cada tipo de personalidade pode ter mais uma característica predominante dentre a dicotomia Assertivo ou Cauteloso.
Há também no Twitter, Instagram e no próprio Facebook páginas que focam exclusivamente em um tipo de personalidade. Por exemplo, o perfil @infp_brasil no Instagram, tem quase 44 mil seguidores. Curiosamente, o tipo de personalidade INFP (introvertido, intuitivo, sentimento e explorador) é o mais presente entre a população brasileira, segundo o perfil de personalidade do Brasil desenvolvido pelo 16Personalities, a partir dos mais de 240 mil respondentes do teste residentes do país.
Para fazer o teste, não é preciso criar uma conta na plataforma ou inserir qualquer informação além de suas respostas ao questionário. No entanto, ao acessar o site, você automaticamente fornece algumas informações pessoais, como qual dispositivo está utilizando e o seu endereço IP (identificação de um dispositivo na rede que permite saber sua localização física). Os respondentes podem optar ainda por criar um perfil e participar das pesquisas conduzidas pelo 16Personalities, que têm seus resultados publicados posteriormente na seção de Artigos do site, em inglês.
Se a Cambridge Analytica (CA) buscou perfilar os cidadãos estadunidenses para influenciar os resultados das eleições presidenciais de 2016, a NERIS Analytics utilizou as 16 personalidades para analisar “a personalidade política dos Estados Unidos” a partir do mesmo evento. A empresa realizou uma pesquisa com os usuários de sua plataforma e traçou a correlação entre partidos políticos, adesão ao voto, candidatos presidenciais e os 16 tipos de personalidade.
Tanto o NERIS Type Explorer, quanto o thisisyourdigitallife, app utilizado pela CA para capturar dados sem o consentimento dos usuários no Facebook, se basearam na metodologia do Big Five, que analisa e calcula a incidência de cinco características na personalidade dos indivíduos: abertura à experiência, realização, extroversão, socialização e neuroticismo.
O thisisyourdigitalife inspirou-se mais especificamente em outro aplicativo, o myPersonality. Este último também se baseou na metodologia do Big Five e é um dos mais importantes projetos capitaneados pelo pesquisador Michal Kosinski no Centro de Psicometria da Universidade de Cambridge, pois construiu um dos maiores bancos de dados sobre a personalidade de indivíduos e populações. As pesquisas de Kosinski e de seus colaboradores, dentre os quais se destaca David Stillwell – o criador do app -, reivindicam que informações e dados pessoais digitais combinados com testes psicométricos e análises automatizadas podem revelar características psíquicas e comportamentais das pessoas.
Todos esses usos de testes de personalidade digitais servem de alerta para a nova economia psíquica dos algoritmos, que aponta para “o investimento contemporâneo– tecnocientífico, econômico e social – em processos algorítmicos de captura, análise e utilização de informações psíquicas e emocionais extraídas de nossos dados e ações em plataformas digitais” (BRUNO; BENTES; FALTAY, 2019, p. 5). Ou seja, por mais que os usuários de plataformas digitais escolham não compartilhar determinados aspectos da vida de forma online, ainda assim, essas informações podem ser previstas em um senso estatístico a partir dos aspectos que os usuários escolhem de fato revelar.
As informações que interessam ao veloz capitalismo de dados não são mais apenas os rastros de nossas ações e interações (cliques, curtidas, compartilhamentos, visualizações, postagens), mas também sua “tonalidade” psíquica e emocional. É esta economia psíquica e afetiva que alimenta as atuais estratégias de previsão e indução de comportamentos nas plataformas digitais (e eventualmente fora delas). (BRUNO; BENTES; FALTAY, 2019, p. 5).
Paralelo a este movimento, os testes de personalidade seguem como ferramentas digitais nas quais descrevemos direto e deliberadamente nosso comportamento. Em muitas das vezes, são utilizados como um meio para chegarmos ao resultado final, como ser aprovado(a) para a próxima fase de um processo seletivo de trabalho, por exemplo. O próprio MBTI surgiu da ideia de que se as pessoas se entendessem melhor no trabalho, haveria menos conflito no ambiente. O site oficial perpetua esse objetivo até hoje, mas ressalta que o uso do teste para contratação de pessoas ou direcionamento de cargos de trabalho não é ético. Mas a recomendação não impede que o MBTI seja utilizado sim em processos seletivos de profissionais, bem como uma série de outros testes psicométricos.
Nesse âmbito, o que as plataformas digitais têm feito é automatizar a aplicação dos testes comportamentais em processos de recrutamento online. Se você já se candidatou para uma vaga de emprego no LinkedIn, por exemplo, é provável que tenha sido redirecionado para o site da Gupy, um software de recrutamento, seleção e admissão que aplica um teste de perfil comportamental (mais um inspirado no modelo do Big Five) por parte das empresas recrutadoras.
Pesquisas mostram que a aplicação dos testes de personalidade pode realmente trazer melhorias para a relação e o desempenho de colegas de trabalho, no entanto, essas ferramentas extrapolam sua verdadeira capacidade ao determinarem até mesmo quem está hábil a concorrer a determinada vaga de emprego ou não, impactando diretamente na qualidade de vida das pessoas (O’NEIL, 2020. p. 170).
Defensores dos testes observam que eles apresentam várias perguntas e nenhuma resposta sozinha pode desqualificar um candidato. Certos padrões de respostas, entretanto, podem e o fazem. E nós não sabemos que padrões são esses. Não nos dizem o que os testes estão procurando. O processo é totalmente opaco. (O’NEIL, 2020, p. 172)
As plataformas digitais têm permitido a aplicação de testes de personalidade em larga escala, por meio de mecanismos de automação que não se sabe como funcionam, mas que ainda assim analisam candidatos e eliminam quais eles julgam não merecer uma oportunidade de trabalho. A própria validade científica desses testes é amplamente questionada – os membros do grupo sobre MBTI no Facebook, inclusive, estão bem cientes disso, não à toa o nome do grupo é MBTI Pseudociênciapostingkkkkkkk. Várias análises mostram que o teste é ineficaz para prever o sucesso de indivíduos no trabalho e que por volta de metade das pessoas que realizam o teste recebem um resultado diferente a cada vez.
Quando se responde ao questionário do MBTI e aos demais testes psicométricos em busca de diversão e entretenimento, não há urgência em comprovar sua acurácia. No entanto, quando os mesmos são aplicados para tomar decisões que irão de fato mudar a vida das pessoas, se faz necessária uma revisão mais rigorosa de sua utilização. O mesmo pode ser dito das plataformas digitais e tecnologias de inteligência artificial (IA), que hoje atuam também como facilitadoras desses testes. A exatidão numérica oferecida pelos testes de personalidade realizados em plataformas digitais pode ser intimidante e conferir à ferramenta, aos seus resultados cheios de gráficos e estatísticas, um caráter de irrefutabilidade. Mas é preciso lembrar que nenhuma tecnologia é neutra – seja ela uma IA ou um teste, todas são idealizadas por seres humanos repletos de vieses que irão reproduzi-los em suas criações também. Talvez nas plataformas digitais só fique mais difícil de enxergá-los.
*Manuella Caputo e Larissa Pacheco são graduandas em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da ECO/UFRJ e pesquisadoras de iniciação científica do MediaLab.UFRJ.
Referências:
BRUNO, Fernanda; BENTES, Anna; FALTAY, Paulo. Economia psíquica dos algoritmos e laboratório de plataforma: mercado, ciência e modulação do comportamento. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 26, nº 3, set-dez, 2019. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/33095>.
BRUNO, Fernanda; BENTES, Anna; FALTAY; Paulo; CARDOSO, Paula; ANTOUN, Mariana; PIO, Debora; STRECKER, Helena; CAPUTO, Manuella; ROCHA, Natássia. Economia Psíquica do Algoritmo em Linha do Tempo. Blog do MediaLab.UFRJ, 2021. Disponível em: <http://medialabufrj.net/blog/2021/03/economia-psiquica-dos-algoritmos-na-linha-do-tempo/>. Acesso em: 02/09/2021.
KOSINSKI, Michael; STILLWELL, David; GRAEPEL, Thore. Private traits and attributes are predictable from digital records of human behavior. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 110, n. 15, p. 5802-5805, abr. 2013. Disponível em: <www.pnas.org/content/pnas/110/15/5802.full.pdf>. Acesso em: 02/09/2021. Acesso em: 02/09/2021.
O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa: como o Big Data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Tradução de Rafael Abraham. 1. ed. Santo André: Editora Rua do Sabão, 2020. 339 p.
STROMBERG, Joseph; CASWELL, Estelle. Why the Myers-Briggs test is totally meaningless. Disponível em: <https://www.vox.com/2014/7/15/5881947/myers-briggs-personality-test-meaningless>. Acesso em: 02/09/2021.