#ESTAMOS LENDO_9 // Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico, Christian Dunker, Nelson da Silva Junior e Vladimir Safatle

6 de abril de 2022

Por Henry Fragel* Resultado de três anos de estudos do Laboratório de Pesquisas em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip) da USP, o livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico” propõe uma abordagem interdisciplinar para compreender como o neoliberalismo atua, mais do que como modelo socioeconômico, como modo de produção de subjetividades fundado na promessa de realização da liberdade individual sob a forma-propriedade.

Em oposição ao liberalismo clássico, que via no mal-estar um impeditivo à produtividade, a racionalidade neoliberal visualiza uma oportunidade a ser aproveitada na extração máxima do cansaço. Assim, o livro propõe delinear a política específica da exploração econômica do sofrimento por meio da codificação de suas experiências de legitimação – pela psicopatologia e pelas operações linguísticas – como fator de risco na agenda do gerenciamento empresarial da vida humana. 

Organizado por Vladimir Safatle, Nelson da Silva Júnior e Christian Dunker, o livro reúne sete artigos divididos em três seções. A primeira delas, “A economia moral neoliberal e seus descontentes”, aprofunda-se nas raízes do neoliberalismo: revisita o pensamento de autores chave para a formulação teórica deste projeto, além de descrever o panorama contextual histórico e geopolítico em que se consolida. 

São exploradas – e desmistificadas – a argumentação e a construção narrativa da austeridade como justificativa moral para a adoção de uma série de medidas de intervenção social e econômica que imputam a incorporação de uma racionalidade de auto vigilância e auto controle. O mito fundador do neoliberalismo, o de que a razão de mercado é uma unidade com a razão humana – de modo que a sociedade de mercado nada mais seja do que o rumo natural da história – fabrica uma noção de liberdade que deve ser alvejada como condição existencial e é antagonista da justiça social. 

A segunda seção, “A produção neoliberal do sofrimento”, detém-se sobre a substituição da lógica clínica tradicional – a do tratamento de doenças –  pela farmacêutica do aprimoramento de si (enhancement), do aumento da performance, do desempenho. É analisada criticamente a hegemonia da depressão no horizonte clínico contemporâneo, marcada pela individualização da culpa pelo fracasso, e que substitui o modelo patológico da neurose. Os autores tomam notas da relação histórica entre a formulação de diagnósticos e os interesses comerciais da indústria farmacêutica, problematizando o alto grau potencial de comorbidade detectado pelo sistema de identificação da neuropsiquiatria neoliberal. Em uma passagem, os onze tipos de diagnóstico para transtorno depressivo são comparados a uma “carta de vinhos”. 

“Neoliberalismo à brasileira”, a seção final, centraliza a paisagem psicológica brasileira como objeto de compreensão. Os pactos sociais em atividade no país durante o período de articulação política e econômica que permitiu a implementação do neoliberalismo reverberam traumas da consolidação da história da democracia brasileira ao longo do século passado. Um olhar atento sobre o fenômeno neopentecostal no Brasil é desenvolvido, levando em conta a postura de concorrência que estas igrejas assumem em relação às psicoterapias no campo da cura e a gramática dos resultados e retornos, compartilhada pelo neoliberalismo. O domínio do mágico se torna aqui objeto de consumo, preenchido por promessas de ascensão social.

Por outro lado, quem não faz promessas é Jair Bolsonaro: o livro termina se debruçando sobre o posicionamento negligente do governo do presidente durante a pandemia de covid-19, citando diretamente a resposta a uma repórter que denunciou o aumento no número de mortes pela doença no Brasil: “E daí? (…) Sou Messias mas não faço milagre”. O episódio manifesta mais uma frente de ação do neoliberalismo: a sabotagem dos vínculos sociais e a legitimação da dessensibilização ao outro.  

Ao longo de quase trezentas páginas, os autores fornecem um sólido fio condutor para a hipótese lançada sobre o intrincado relacionamento entre neoliberalismo e sofrimento. O artigo “Para uma arqueologia da psicologia neoliberal brasileira” oferece uma síntese da situação psíquica produzida pela narrativa empresarial: 

O sofrimento expresso pela repetição, pela perda de sentido e pela perda de satisfação no trabalho, bem como os sentimentos de frustração e ansiedade, não são o objetivo do gerenciamento. A defesa contra a angústia, ou seja, a preservação do eu, sob forma de negação, racionalização, projeção ou sublimação do conflito, é que é visada pela gestão liberal do sofrimento.” (SAFATLE, SILVA JÚNIOR E DUNKER, 2020:240).

SAFATLE, Vladimir; SILVA JÚNIOR, Nelson da; DUNKER, Christian. Introdução. In: SAFATLE, Vladimir, SILVA JÚNIOR, Nelson da, DUNKER, Christian. (Orgs) Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. 

*Henry Fragel é mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura/ ECO-UFRJ e pesquisador do MediaLab.UFRJ.

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