O FBI Tá de Olho: Uma História de Resistência à Vigilância Anti-Negro

1 de julho de 2022

Mais de um século de métodos de contra-vigilância enfatizam a importância da abolição 

Por Simone Browne*

Esse artigo integra a série Abolition for the People [1], trazida a público por uma parceria entre a Kaepernick Publishing e a LEVEL, uma publicação do Medium para e sobre as vidas de homens racializados. A série, que inclui trinta ensaios e conversas ao longo de quatro semanas, aponta para a conclusão crucial de que policiamento e prisões não são soluções para as questões e pessoas que o estado julga como problemas sociais – e clama por um futuro que priorize a justiça e as necessidades comunitárias.

Em outubro de 1976, a revista Ebony publicou uma matéria sobre a popularidade da Citizen Band (CB) radio [2] entre usuários Negros, uma tecnologia de comunicação oral à distância e de via dupla. A rádio CB servia como meio de organização e entretenimento comunitários, com o estabelecimento de clubes sociais, a invenção de vocabulários, e o uso de canais quase exclusivamente por entusiastas Negros. O artigo nomeou Redd Foxx (codinome: “Redbird”) e Muhammad Ali (codinome: “Big Bopper”) como alguns dos mais famosos usuários dessa tecnologia e também notaram que “Negros têm usado rádio CB por anos; não é nada novo.” 

Antes do crescimento da popularidade da rádio CB no mercado consumidor, manifestantes, ativistas de base e organizações de defesa dos direitos civis, como Student Nonviolent Coordinating Committee (SNCC) e The Congress of Racial Equality (CORE) [3], utilizavam essa tecnologia de comunicação, junto às linhas WATS (Wide Area Telephone Service) [4], para monitorar ameaças, atos de intimidação, assédio, bombardeios, detenções e prisões comandadas pela polícia, pela Ku Klux Klan, por Conselhos de Cidadãos [Brancos] e outras entidades capitaneadas pela supremacia branca.  

Um interlocutor utilizaria as linhas WATS de taxa fixa para contatar diretamente escritórios de organizações de defesa dos direitos civis, na tentativa de contornar telefonistas locais que poderiam ser e, com frequência, eram capazes de bloquear chamadas ou escutar conversas e repassar informações à polícia local, vigilantes brancos e outros perpetradores de violência. Tais chamadas ainda eram ouvidas pelo FBI e pela polícia local, e as transmissões CB em ondas de rádio públicas eram comumente sujeitas a “interferência sistemática” de frequências [5] aumentando o “risco de vida” [6] dos trabalhadores de recenseamento eleitoral e aqueles que organizaram ou auxiliaram os esforços de emancipação do Mississippi’s Freedom Summer [7]. Mas os dados então registrados por meio dessas chamadas seriam utilizados para o envio de assistência e proteção, para a monitoração de atividades de supremacistas brancos e, também, para a construção de relatórios sobre as linhas WATS. Esses resumos compilados de incidentes registrados poderiam então ser compartilhados com outras organizações, advogados do movimento, o Departamento de Justiça, o FBI e a imprensa. 

 

The Negro Motorist Green-Book, 1940. Imagem: Biblioteca Pública de Nova Iorque.

 

O uso de ferramentas comunicacionais para o trabalho de confrontação à vigilância anti-Negro e ao terrorismo racial tem inúmeros precedentes históricos. The Negro Motorist Green Book [8], e publicações similares, catalogaram rotas rodoviárias para que viajantes Negros pudessem transitar por estradas e acomodações seguras dentro do sistema de segregação, cidades sundown [9] e postos de gasolina que recusavam seu pagamento. Muito antes disso, a ruptura com tecnologias de escravidão tornou-se uma maneira efetiva de sabotar a própria escravidão; reaproveitar e forjar autorizações e cartas de alforria, por exemplo, ajudava a facilitar fugas e pessoas Negras em deslocamento. Em 1851, um jornal advertiu “pessoas de cor de Boston” a “ficarem atentas”, uma vez que vigias e policiais tinham sido autorizados a agir como “sequestradores” porque a Lei do Escravo Fugitivo de 1850 tinha federalizado a captura de escravos. Este material impresso oferecia um conselho importante: “Evite conversar com os vigias e policiais de Boston … [especialmente] se você valoriza sua liberdade e o bem-estar dos fugitivos entre vocês”. (Infelizmente, mais de 150 anos depois, uma cautela semelhante ainda se aplica.)

Em outro exemplo, Harriet Ann Jacobs compartilhou meticulosamente os detalhes de sua sagacidade ao enganar seu captor, Dr. Flint (um pseudônimo) e, eventualmente, escapar do assédio sexual predatório e da escravidão na narrativa de 1861, Incidents in the Life of a Slave Girl [10]. Sua auto-emancipação começou na Carolina do Norte, em 1853, quando fugiu e se abrigou nas casas de outras pessoas, escondeu-se em um pântano, e, ocasionalmente, em um sótão acima da casa de sua avó, por quase sete anos. Esse esconderijo, onde a escuridão era quase total e o ar era sufocante, “tinha apenas três metros de comprimento e dois de largura” [11] e, em seu ponto mais alto, apenas um metro. Posteriormente, ela fez um buraco em uma das paredes, com aproximadamente 2,5 centímetros de diâmetro, pelo qual ela podia pegar algum ar, espiar o lado de fora, vigiar seus filhos, e escutar conversas que não deveria ouvir, como a dos “caçadores de escravos planejando como capturar um pobre fugitivo” [12]. Enquanto ainda estava confinada no sótão, Jacobs frequentemente passava a perna em Flint e seus caçadores de escravos contratados, escrevendo cartas endereçadas a ele e à avó dela, e depois enviando essas cartas para um amigo de confiança. que as enviaria de volta para a Carolina do Norte, mas com carimbo postal de lugares como Nova Iorque, Boston e Canadá. Jacobs enfim fugiu de sua cela apertada e partiu rumo à liberdade na Filadélfia e, depois, para Nova Iorque e Boston.

 

Rádios CB à venda, 1977. Foto: Fairfax Media Archives/Getty Images.

 

Juntos, esses atos rebeldes de insurgência e usos furtivos da tecnologia – rádios CB, linhas WATS, documentos falsificados, usos engenhosos dos serviços postais – antecipam as ferramentas necessárias de subversão diante da violência policial em curso e da vigilância estatal contemporânea. Eles demonstram as maneiras inventivas das comunidades Negras de trabalhar dentro da infraestrutura existente para interromper os sistemas que deveriam conter, objetificar e lucrar com eles. Uma parte fundamental desses atos rebeldes são as redes e amizades forjadas dentro de um sistema empenhado em anular a vida social Negra.

Mas o que significa, nesse momento, que corporações capitalizem o medo legítimo que as pessoas têm da violência racializada e a realidade da vigilância, seja por parte do estado colonizador ou não? Colocando de outra forma, quando produtos e inovações – como dashcams [13] ou o atalho do iPhone “Ei, Siri, tô tomando um enquadro!” [14] [15] – são comercializados e popularizados como ferramentas de contra-vigilância, eles reforçam a ideia de que tecnologias de coleta de dados podem ajudar pessoas a transitar com segurança entre contato e monitoramento. Ao mesmo tempo em que esses produtos podem amenizar danos, ou, ao menos registrá-los, nós deveríamos analisar muitos desses movimentos como parte de uma expansão do estado de vigilância. A Amazon, por exemplo, compartilha filmagens de campainhas inteligentes vinculadas à plataforma de vigilância Ring com agências de policiamento. Essa parceria pode se tornar ainda mais problemática, uma vez que a filmagem não conta, por enquanto, com criptografia fim-a-fim, e a Amazon acabou de anunciar que a companhia estará em breve vendendo drones que circulam pelo interior das casas dos usuários como parte do equipamento de vigilância da Ring.

Por outro lado, poderíamos olhar para ferramentas que são imperfeitas no momento, mas que sinalizam a prática da abolição no design e nos métodos de uso (ver: Not911, um app criado por engenheiros de software anteriormente encarcerados que oferecem aos usuários alternativas à chamada de serviços de emergência, sem enviar a polícia). Mais importante ainda, as práticas comunitárias de cuidado, kits de ferramentas e atos de ajuda mútua realizados, por exemplo, pela Survived and Punished, pela Bay Area Transformative Justice Collective, pela AAPI Women Lead, pela Stop Spying LAPD Coalition [16] e outras organizações, trabalham para produzir as condições para a transformação social ao interromper furtivamente a vigilância anti-Negro. Ao fazer isso, eles nos oferecem um modelo para a abolição.

Debilitar formas racializadas de vigilância é uma prática contínua, capaz de expor os limites e as fraquezas dessa mesma vigilância. Com frequência, agentes corporativos e estatais tentam minar a resistência por meio da reforma. Porém, não há como capturar e cooptar completamente as práticas de recusa e invenção que têm a liberação Negra como meta.  

 

*Simone Browne é professora do Departamento de Estudos Africanos e da Diáspora Africana da Universidade do Texas, em Austin. Também é diretora de pesquisa no projeto colaborativo Good Systems, com ênfase em vigilância crítica. Publicou, em 2015, o livro Dark Matters: On the Surveillance of Blackness, ainda sem tradução para o português. O texto original foi publicado aqui.

Tradução por Henry Fragel, mestrando pelo PPGCOM da ECO/UFRJ e pesquisador do MediaLab.UFRJ.

Créditos da imagem destacada: Reuters/Mario Anzuoni/Richard Susanto.

 

Notas:

[1] Abolição para o Povo, em tradução livre. Os hiperlinks do texto original foram mantidos com o acréscimo de notas de tradução, quando necessário; todos os redirecionamentos são para páginas em inglês.

[2] A CB radio é conhecida no Brasil como Rádio do Cidadão ou PX. Para preservar a integridade do texto original, optamos por manter a sigla utilizada pela autora.

[3] Comitê de Coordenação Estudantil Não-Violenta e O Congresso da Igualdade Racial, em tradução livre.

[4] As linhas WATS compreendiam um serviço de telefonia à longa distância mediante taxas fixas, disponível em países integrantes do Plano de Numeração Norte-Americana. Tornou-se obsoleto no final do século XX. 

[5][6] Relatório da SNCC sobre as linhas WATS, em inglês. 

[7] Verão da Liberdade em Mississippi, em tradução livre. Foi uma campanha voluntária de 1964 focada no aumento co número de eleitores Negros registrados no estado. 

[8] O Livro Verde do Motorista Negro, em tradução livre. Escrito por Victor Hugo Green, foi publicado de 1936 a 1966.

[9] Cidades sundown eram territórios nos Estados Unidos em que a discriminação racial era profundamente enraizada na cultura e legislação local, de modo que diversas placas sinalizavam que “pessoas de cor” (colored people) deveriam abandonar a cidade antes do pôr-do-sol (sundown), sob o risco de serem alvejadas pela violência dos habitantes. Pesquisadores ainda discutem se pode se considerar que essas cidades ainda existam e os efeitos dessas práticas nas gerações posteriores de residentes.

[10] [11] [12] No texto original, a autora disponibiliza o acesso para o livro digitalizado, em inglês. Foi traduzido no Brasil como “Incidentes na Vida de uma Garota Escrava”, “Incidentes na Vida de uma Menina Escrava” e “Incidentes na Vida de uma Escrava”, sendo a última edição citada a referenciada em substituição às citações do texto original nos itens 13 e 14. 

[13] Câmeras de segurança acopladas aos painéis e parabrisas de veículos automobilísticos. 

[14] Artigo mencionado no texto original, relativo à versão anglófona do comando, “Hey, Siri, I’m getting pulled over”, em inglês. 

[15] Artigo sobre o lançamento da versão brasileira do comando, “Ei, Siri, tô tomando um enquadro”, em 2021, após aproximadamente três anos de funcionamento nos EUA. 

[16] Sobreviventes e Punidos, Coletivo de Justiça Transformativa de Bay Area, Liderança das Mulheres Asiático-Americanas e Ilhoas do Pacífico e Aliança pelo Fim da Espionagem do Departamento Policial de Los Angeles, em tradução livre.