Dobras #57 // Violência de gênero online: a ciborgue aterrisa no século XXI

20 de abril de 2023

Por Juliana Fernandes [1]Juliana é mestra em Relações Internacionais pela PUC-Rio e assistente de pesquisa do MediaLab.UFRJ.

[Este texto é um desdobramento e resumo da dissertação ‘Violência e política: uma cartografia das ciborgues desde a América Latina’ defendida no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais, do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio. A dissertação está disponível na íntegra aqui]

 

A internet hoje não apenas impacta vidas e relações, mas se apresenta como elemento constitutivo dos âmbitos sociais e subjetivos, e em todas essas camadas vai exercer implicações muito importantes. Em 2019, o número de usuários móveis únicos no mundo era de 5,11 bilhões, um aumento de 100 milhões (2%) com relação a 2018, e o número de usuários de Internet chegou a 4,39 bilhões, com 3,48 bilhões de perfis de mídia social sendo acessadas por dispositivos móveis por 3,26 bilhões de pessoas. Em média, os usuários da Internet em todo o mundo passam 6 horas e 42 minutos online todos os dias (KEMP, 2019). No Brasil, 70% da população está conectada de acordo com a pesquisa TIC Domicílios, indicando que 126,9 milhões de pessoas usaram a rede regularmente em 2018 e que metade da população rural e das classes D/E e agora têm acesso à internet (LAVADO, 2019).

Essas novas mídias potencializam as comunicações descentralizadas e multiplicam os tipos de realidade que encontramos na sociedade (SANTAELLA, 2004). A ciborgue, fruto do importante Manifesto Ciborgue de 1985 de Donna Haraway, definiu os rumos dos estudos sobre esse ser que vive no mundo embricado entre organismo e máquina.

Conforme mais se desenvolvem as tecnologias de informação cibernética, adquirimos mais formas de enxergar as relações de poder que envolvem sua existência e proliferação. Apesar de pensarmos nos aspectos (aparentemente) abstratos quando falamos de ciberespaço (dados, algoritmo, internet, wi-fi, etc.), a verdade é que o grosso de sua existência necessita de uma série de sistemas impulsionados e constituídos tanto por estruturas físicas quanto por pessoas de carne e osso. 

Se podemos afirmar que a realidade digital e a vida cotidiana de centenas de milhões de pessoas se tornaram fundidas com o ciberespaço ao ponto de ser difícil, senão impossível, separá-las, também não podemos deixar de mencionar o que apontam as críticas das teorias da ciência e tecnologia, principalmente as teóricas feministas: essa dissolução de fronteiras está ocorrendo onde? Para quem? E como? Para muitas pessoas, a internet ainda continua sendo um mundo distante e ambíguo.

Figura 1:  @mariatatumba/ Reprodução: Instagram

 

A VIOLÊNCIA DE GÊNERO

A utilização, ocupação e projeção cada vez maior alcançada pelas minorias de gênero no ciberespaço têm sido acompanhadas por discursos misóginos, racistas, lesbo e homofóbicos e outras formas de ataque e discriminação que surgem como tentativa de calar essas vozes (CODINRIGHTS; INTERNETLAB, 2017). 

Esses discursos não são novidade, assim como as ações e métodos de ataque como ameaças, chantagens e perseguições. Acontece que essas violências antes restritas a encontros pessoais tradicionais, com as redes ganham em complexidade e, na maioria das vezes, resultam em uma matriz enredada de diversos tipos de danos morais, psicológicos e materiais. (CODINRIGHTS; INTERNETLAB, 2017). É a isto que chamamos de violência de gênero online, ou, mais atualmente, de violência de gênero facilitada pela tecnologia.

De acordo com a Associação para o Progresso das Comunicações, a violência relacionada à tecnologia contra as mulheres define os atos de violência de gênero cometidos instigados ou agravados, em parte ou totalmente, pelo uso de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), plataformas de mídia social e e-mail. Ainda segundo a definição, estes atos causam danos psicológicos e emocionais, reforçam o preconceito, prejudicam a reputação, causam perdas econômicas e criam barreiras à participação na vida pública e podem levar a formas de violência sexual e outras formas de violência física (BARRERA, 2017).

Postagens, comentários e hashtags com teor racista, homofóbico e misógino são espalhados pelas redes, seja por meio de bots, perfis falsos ou por pessoas reais. A violência de gênero facilitada pela tecnologia assume muitas formas, incluindo a sextorsão (chantagem ameaçando publicar informações, fotos ou vídeos sexuais); compartilhamento de fotos íntimas sem consentimento; pornografia de vingança (a divulgação com a intenção de causar humilhação da vítima); doxxing (publicação de informações pessoais privadas); bullying, ofensas e discursos de ódio; assédio sexual; perseguição cibernética (cyberstalking); hacking; uso de identidade sem consentimento; criação e divulgação de dados pessoais falsos; ataques à categorias profissionais; e usar a tecnologia para localizar sobreviventes de abuso a fim de infligir mais violência, entre muitos outros.

Figura 2: Coding Rights/ Reprodução: www.médium.com/codingrights

 

Em se tratando das violências online, qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo fica exposta a apenas um clique de distância. Um comentário feito pode ser visível para todos e para sempre aparecer nos resultados das buscas, por exemplo. A permanência de espaços online e informações arquivadas pode ter efeitos profundos no sustento e na vida pessoal das mulheres e minorias de gênero que se vêem nesta situação, e tais consequências precisam ser apreendidas na sua complexidade. 

Com o tempo, a exposição contínua a esses abusos pode levar a distúrbios alimentares e outros problemas sérios, inclusive afetando o bem-estar psicológico das pessoas, aumentando seus sentimentos de raiva e depressão e diminuindo a autoestima (POLAND, 2016). Já mencionado aqui, a capacidade de reverberação de uma mensagem faz com que as discriminações se intensifiquem, criando um contexto de medo e terror.

A SaferNet Brasil, uma associação civil de direito privado sem fins lucrativos e sem vínculos político partidários, religiosos ou raciais, que busca promover e defender os Direitos Humanos na Internet no Brasil, compila em seu site informações com as denúncias que são enviadas para sua central. Entre os cinco principais tópicos nos atendimentos pelo Canal de Ajuda da SaferNet Brasil, três envolvem violações com raízes discriminatórias em que as mulheres são as que mais pedem ajuda. 

Elas representam 70,5% dos casos de sexting (em português, sextorsão, quando se pede dinheiro em troca da não divulgação de conteúdo) e exposição de conteúdo íntimo; 67,4% dos atendimentos por ciberbullying e ofensas; e 62,1% por exposição a conteúdos impróprios e violentos, sendo os haters (responsáveis por perseguições, ameaças, humilhações) em sua maioria homens (96%), brancos (79%) e das classes A e B (53%). 

De acordo com seus últimos números, 4.134.808 denúncias anônimas foram feitas pela população envolvendo 790.390 páginas (sites) distintas (574.730 foram removidas) escritas em 9 idiomas, hospedadas em 73.000 domínios diferentes, atribuídos para 104 países em 6 continentes. Ainda de acordo com o site, o Brasil ocupa o quinto lugar da média mundial de alvos de denúncias no período de 2006 (quando se iniciaram os registros) a 2019. Nesse ranking o Orkut Brasil ocupa até hoje o primeiro lugar do número de denúncias, apesar de ser uma rede social inativa desde 2014 (com um total de 198.454 denúncias). 

Quando trazemos os números da pandemia, denúncias de violência e discriminação contra mulheres em sua central cresceram 21,27% em abril de 2020 em relação ao mesmo período de 2019, que teve 667 registros. A exposição de imagens íntimas aumentou em 154,90% neste período, com 130 denúncias em abril de 2020, das quais 70% das vítimas são mulheres. 

A internet não é um espaço abstrato, mas uma rede que permite conexões seletivas entre pessoas e informações. É uma rede caracterizada por geografias altamente desiguais que de muitas maneiras reforçou os padrões globais de visibilidade, representação e voz aos quais estamos acostumados no mundo offline (GRAHAM, 2013) e que demandam infraestruturas também estabelecidas de maneiras desiguais.

 

CIBORGUES DESIGUAIS

Figura 3: @luchadoras.mx/ Reorodução: instagram

 

É muito importante ter atenção ao fato de que mesmo estando todas expostas, ainda há níveis de exposição e violência que vão atingir diferentes corpos de diferentes maneiras. Racismo e sexualidade são elemento-chave do assédio e agressões, principalmente quando olhamos para estas experiências na América Latina. Esse homem que possui essa posição de poder em sua grande maioria das vezes vai ser um homem branco, e atingirá principalmente as mulheres não-brancas e fora da heterossexualidade compulsória. 

No contexto brasileiro, o discurso de ódio é mais direcionado às pessoas de cor, ou seja, consiste em discursos de cunho racistas, em sua maioria contra pessoas negras e tem potencial para causar danos a um grupo em particular. Em 2017, foram registrados 63.698 casos de discursos de ódio no ambiente virtual brasileiro, sendo que entre eles, um terço era de cunho racista, no qual as mulheres negras representam 81% das vítimas (SILVA, 2021). 

Mulheres e minorias de gênero negras, indígenas, rurais, jovens e com deficiência podem estar ainda mais em risco por enfrentarem taxas mais altas de pobreza, estigma e marginalização, o que potencializa as chances de sofrer tais violências. Além de não terem o suporte e a atenção adequados do poder público. Como consequência do período colonial e do patriarcado, mulheres negras e indígenas estão na base da pirâmide socioeconômica da população brasileira, ocupando as posições mais precárias do mercado de trabalho no país, com os menores índices de escolarização e mais baixo acesso a bens e serviços.

Ao facilitar a disseminação de mensagens, a internet pode servir para reforçar o imaginário racista e motivar atos de violência implícitos e explícitos, fazendo com que ambientes online também desempenhem um papel fundamental na reprodução do racismo.

No caso de pessoas LGBTQIA+ existem estudos que mostram que essas pessoas têm maior probabilidade de apresentar sintomas de desgaste emocional ou problemas psicológicos, como depressão, ansiedade ou pensamentos suicidas. Podemos, assim, afirmar que esses sintomas podem ser amplificados por experiências da violência online. Em outro mapeamento publicado pela Gênero e Número (SILVA, 2020), 51% das pessoas LGBTQIAs+ entrevistadas sofreram pelo menos uma agressão durante o segundo semestre de 2018 e 87% relatam ter tomado conhecimento de violências cometidas. Ainda, 57% das mulheres lésbicas declararam ter sofrido violência, seguidas das pessoas trans e travestis (56%), gays (49%) e pessoas bissexuais (44,5%). Ao passo que somente 3% das pessoas entrevistadas que sofreram violências disseram ter feito boletim de ocorrência após o ocorrido.

Enquanto mulheres, meninas e pessoas LGBTQIA+ se autocensuram para prevenir a violência de gênero facilitada pela tecnologia, suas vozes são silenciadas e as democracias sofrem. A falta de representatividade  é um problema não só para os direitos humanos e a liberdade de expressão, mas também para o ecossistema de tecnologia e inovação. No entanto, a representatividade igualitária de gênero, ou a mera inclusão das mulheres na linguagem digital, não faz com que o sistema predatório, pernicioso e sexista seja derrotado, e somente sugerir que as mulheres se tornem parte da classe exploradora que se beneficia da hierarquia de gênero não é (ou não deveria ser) uma meta feminista.

Melhorar as condições de possibilidade de vida dessas ciborgues passa por estruturar pontos de apoio, denúncia, assistência jurídica, de saúde e respostas sociais. É preciso melhores os serviços de mídia para serem mais responsivos, mais bem monitorados, e mais inclusivos, trabalhando no desenvolvimento digital que construa segurança e privacidade, reagindo proativamente contra ideologias anti-gênero e tornando sua posição visível em todas as oportunidades. Além de melhorar a regulamentação, a prioridade tem que ser evitar que essas violências ocorram, em primeiro lugar, e para isso é preciso transformar normas sociais e de gênero nocivas que proliferam e se manifestam em espaços online e por meio do uso da tecnologia. 

Por mais que nos seja apresentado em termos de virtualidade, da confusão das fronteiras, do reposicionamento de identidade, gêneros, da modificação da nossa corporalidade, o ciberespaço também reforça a condição material da nossa existência.

 

Referências

BARRERA, L. La violência em línea contra las mujeres em México. Cidade: Luchadoras, 2017.

CODINRIGHTS; INTERNETLAB. Violências contra mulher na internet: diagnóstico, soluções e desafios. Contribuição conjunta do Brasil para a relatora especial da ONU sobre violência contra a mulher. São Paulo, p. 1-52. 2017.

GING, D.; SIAPERA,. Gender Hate Online: Understanding the New Anti-Feminism. Switzerland: Palgrave Macmillan, 2019.

GRAHAM, M. Geography/internet: ethereal alternate dimensions of cyberspace or grounded augmented realities? The Geographical Journal, Oxford, v. 179, p. 177-182, june 2013.

HARAWAY, D.; KUNZRU, H.; TADEU, T. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. 

KEMP, S. Digital 2019: Global Internet Use Accelerates. We are Social and Hootsuite, We Are Social, [s.l.], 30 jan. 2019. Disponível em: https://wearesocial.com/blog/2019/01/digital-2019-global-internet-use-accelerates. Acesso em: 05 jun. 2020.

LAVADO, T. Uso da internet no Brasil cresce e 70% da população está conectada. G1, [s.l], 28 ago. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/08/28/uso-da-internet-no-brasil-cresce-e-70percent-da-populacao-esta-conectada.ghtml. Acesso em: 05 jun. 2020.

POLAND, B. Haters: Harassment, Abuse, and Violence Online. Nebraska: Potomac Books, 2016.

SAFERNET. Indicadores da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos. Safernet, [s.l.], [s.d.]. Disponível em: https://indicadores.safernet.org.br/. Acesso em 15 jun. 2020.

SANTAELLA, L. Sujeito, subjetividade e identidade no ciberspeaço. In: LEÃO, L. Dervias: cartografias do ciberespaço. São Paulo: Annablume, 2004. p. 45-54.

SILVA, V. Em pesquisa sobre violência contra LGBTs+ no contexto político-eleitoral, mais de 50% dizem ter sofrido pelo menos uma agressão. Gênero e Número, [ s. l.], [2020?]. Disponível em: http://violencialgbt.com.br/em-pesquisa-sobre-violencia-contra-lgbt-no-contexto-politico-eleitoral-mais-de-50-dizem-ter-sofrido-pelo-menos-uma-agressao/. Acesso em: 08 nov. 2020.

SILVA, T. Comunidades, Algoritmos e Ativismos Digitais: olhares afrodiaspóricos. São Paulo: LiteraRua, 2ª ed., 2021.

References

References
1 Juliana é mestra em Relações Internacionais pela PUC-Rio e assistente de pesquisa do MediaLab.UFRJ.