Dobras #58 // Uma reflexão sobre o conceito de “usuário” na indústria de tecnologias digitais

27 de abril de 2023

por Alice Lerner[1]Alice é designer de experiência do usuário e mestranda em Comunicação e Cultura na Escola de Comunicação da UFRJ

 

O problema com as teorias modernas behavioristas não é que elas estejam erradas, mas que elas podem se tornar verdadeiras. Porque são a melhor conceitualização possível de algumas tendências da sociedade moderna.

hannah arendt

 

Michel Foucault argumenta em “As palavras e as coisas” que no começo do século XIX, quando o sujeito do conhecimento passa a ser também objeto do conhecimento, surge o homem, esta nova figura do pensamento ocidental que estaria, quando Foucault escreve na década de 1960, “já em vias de desaparecer” (pg. 534). A relação deste homem com o mundo foi pensada desde então a partir de categorias como sujeito, operário e cidadão, cada qual oferecendo um enquadramento próprio da experiência humana à luz de suas respectivas tradições e interesses. Com o triunfo do capitalismo financeiro, alguns autores afirmaram que a categoria central para se pensar o indivíduo contemporâneo seria a de consumidor, uma vez que nós não mais nos definíamos por nossa religião, etnia ou ocupação, mas sim por nosso “gosto” (Campbell, 2004)[2]Esta suposição foi endossada de forma contundente pela artista Barbara Kruger ao brincar com a frase célebre de Descartes na série “I shop therefore I am” (Compro logo existo), de … Continue reading.

Mas com a evolução do capitalismo financeiro para o que Shoshana Zuboff chamou de capitalismo de vigilância, o termo consumidor se torna insuficiente na medida em que ganha corpo um novo modelo de negócios baseado em anúncios, que separa aquele que paga daquele que usa. Antes, quem pagava por um carro era dono dele e o utilizava; hoje, quem paga pelos produtos das principais gigantes de tecnologia são os anunciantes, enquanto quem usa somos todos nós. Essa separação deu origem ao alardeado mito de que “se você não está pagando pelo produto, você é o produto”, mas Zuboff chama atenção para o caráter simplório dessa construção: não somos o produto final, mas sim a “matéria-prima” que alimenta a inteligência de máquina para gerar produtos de previsão e modificação comportamental. 

Nessa nova fronteira de poder (Zuboff, 2018), cujas principais representantes são Apple, Google, Amazon, Microsoft e Meta, a categoria escolhida para se referir às pessoas foi  usuário[3]Um dito popular no mercado de tecnologia nos lembra que a única outra indústria a empenhar esse termo para se referir a seus clientes é a de drogas ilícitas, o que é, no mínimo, curioso.. Ao mesmo tempo sujeito (do uso que lhe confere o nome) e objeto (das predições e manipulações da indústria), a figura do usuário não se dobra facilmente às dicotomias e chaves de leitura que prosperaram no século XX. O que a escolha desse termo nos diz sobre a forma como o poder se exerce e nos constitui nas primeiras décadas do século XXI?

Foucault, em um pequeno texto de 1982 chamado O sujeito e o poder, define este último como “um conjunto de ações sobre ações possíveis”, ou seja, uma tentativa de organizar as possibilidades de ação dos sujeitos, conduzindo suas condutas. Diferente da violência, que aniquila pela força e age diretamente sobre os corpos fechando qualquer possibilidade de deslocamento, a relação de poder pressupõe o reconhecimento de um “outro” ativo e livre que possa reagir, resistir e, em última instância, escapar. 

Essa afirmação da necessidade de um sujeito livre sobre o qual se possa exercer o poder é especialmente interessante para o contexto desta reflexão, porque ajuda a compreender os limites de alienação possível do sujeito que habita o usuário. Trata-se de uma negociação constante para evitar o sujeito sem, no entanto, aniquilá-lo, porque para que exista uma relação de poder é preciso que haja uma liberdade que se recuse a ser inteiramente determinada. 

Em consonância com essa hipótese, a governamentalidade algorítmica – apresentada em 2013 por Anthoinette Rouvroy e Thomas Berns como desdobramento do conceito original de Foucault – sugere que estamos diante de uma nova categoria de organização das relações que se baseia não mais na política, nas leis e normas sociais, mas sim em um processamento algorítmico de enormes quantidades de dados, que busca substituir o possível pelo provável

Em seus três tempos (coleta massiva de dados, mineração e ação automatizada sobre comportamentos) essa nova forma subliminar de governo busca “minimizar a implicação do indivíduo”, suscitando a “esperança de libertar-se da subjetividade”. Ou seja, temos aqui um usuário alijado do sujeito cognoscente que nele habita. Livre, pero no mucho.

Uma contribuição preciosa para o aprofundamento dessa questão veio do conceito de poder instrumentário apresentado por Zuboff. Para a autora, a forma de saber do poder instrumentário é uma mistura da “indiferença formal” do neoliberalismo com a perspectiva observatória do behaviorismo radical que “reduz a experiência humana a comportamentos mensuráveis e observáveis enquanto permanece inabalavelmente indiferente ao significado dessa experiência” (p.376). 

A ressonância com uma visão foucaultiana de poder fica evidente na escolha de Zuboff por apresentar o conceito de poder instrumentário em oposição ao totalitarismo tão familiar ao século XX. Se antes existia uma engenharia da alma que – frequentemente através da violência – buscava conquistar o que havia de mais íntimo no humano, nesse novo poder temos uma engenharia do comportamento feita a partir de uma “indiferença radical” que desumaniza criando “equivalência sem igualdade”. Na perspectiva distanciada desse novo poder, os indivíduos são reduzidos a “organismos que se comportam”. 

 

O usuário na indústria de tecnologias digitais

Existe muita discussão sobre o momento exato em que o design começa a se propor “centrado no usuário”. Harlan Crowder, um programador razoavelmente desconhecido da IBM, foi um dos primeiros a usar o termo “user friendly” para se referir a um computador, ainda na década de 1960, mas quem leva o crédito pela consolidação da ideia é a Apple, que na década de 1980 já estava fazendo propaganda por “máquinas amigáveis aos usuários”. O lançamento do Macintosh em 1984 dizia: “Já que computadores são tão inteligentes, não faria mais sentido ensinar aos computadores sobre as pessoas, ao invés de ensinar às pessoas sobre os computadores?”[4]Ver: https://80sactual.blogspot.com/2008/09/1984-apple-macintosh.html. O termo “experiência do usuário”, no entanto, que dá origem a um campo mais ou menos institucionalizado de estudo, aparece pela primeira vez no livro Design of Everyday Things, lançado por quem viria a ser o guru da área, Donald Norman, em 1988. 

Passados 35 anos, em um cenário no qual dois bilhões e meio de pessoas utilizam smartphones (Kuang, 2019) em uma temporalidade 24/7 (Crary, 2013), a experiência do usuário se tornou um aspecto central da vida e, consequentemente, uma área de crescente interesse social. Na medida em que a satisfação do usuário se torna uma obsessão de empresas ávidas por fidelizar seus clientes, faz-se necessário o questionamento: quais modelos de sujeito foram empregados na construção desse representante da experiência humana na era digital? 

A teoria por trás da prática indicada por Zuboff (2018), assim como a virada captológica de Seaver (2018) e a virada comportamental de Nadler e Mcguigan (2018), fazem, com enfoques distintos, referência a um processo semelhante no qual a matriz epistemológica comportamental passa a guiar a coleta de dados, as práticas de marketing, o design das plataformas e os sistemas de recomendação algorítmica buscando “otimizar suas ferramentas e aperfeiçoar os métodos de influenciar e persuadir usuários, explorando suas vulnerabilidades cognitivas e emocionais, bem como seus padrões automáticos de comportamento” (Bentes, 2022).

Para Seaver (2018), a virada captológica marca o momento em que os sistemas de recomendação, que ele retrata como armadilhas, abandonam métricas de performance baseadas nas avaliações declaradas dos usuários em favor de métricas implícitas extraídas de seu comportamento. 

Enquanto isso, no marketing digital, Nadler e McGuigan (2017)  evidenciam o duplo discurso feito pela indústria: para evitar a regulação da coleta de dados, as agências de marketing argumentam que os usuários são indivíduos racionais e soberanos que cedem conscientemente seus dados em troca de ofertas “relevantes”; por outro lado, essas mesmas agências vendem para os seus clientes técnicas herdadas da economia comportamental que pressupõem indivíduos “previsivelmente irracionais” (Ariely, 2008). 

Já no campo do design de plataformas, a instrumentalização das referências da psicologia comportamental talvez tenha seu símbolo mais concreto em um livro de um dos alunos de Fogg, Nir Eyal, que virou manual dos empreendedores do Vale do Silício. Lançado em 2013, Hooked, como construir produtos e serviços formadores de hábitos explicita de forma bastante didática as etapas (supostamente) necessárias para garantir que os usuários estejam eternamente enganchados. 

Na frase que abre esse texto, Hannah Arendt sugere que as teorias behavioristas seriam a melhor conceitualização possível de algumas tendências da sociedade moderna. À luz dessa reflexão sobre o conceito de usuário na indústria de tecnologias digitais há motivos suficientes para supor que ela estava certa.

 

Referências

Ariely, D. (2008). Previsivelmente irracional: as forças ocultas que formam as nossas decisões. Elsevier.

Bentes, A. (2022). O modelo do gancho e a formação de hábitos: tecnobehaviorismo, Capitalismo de vigilância e economia da atenção. https://revistas.urosario.edu.co/xml/5115/511569909004/html/index.html

Bentes, A., Bruno, F. & Faltay, P. (2019). Economia psíquica dos algoritmos e laboratório de plataforma: mercado, ciência e modulação do comportamento. Revista Famecos, 26(3), 1-21. http://dx.doi.org/10.15448/1980-3729.2019.3.33095

Bruno, Fernanda. (2013)  Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Sulina.

Campbell, C. (2004). I shop therefore I know that I am: the metaphysical basis of modern consumerism. Consumption and Consumer Society: The Craft Consumer and Other Essays, p. 121-142

Crary, J. (2014). 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. Contraponto.

Eyal, N. (2020). Hooked: como construir produtos e serviços formadores de hábitos. Editora AlfaCon.

Fogg, B. J (2013). Designing for behavior change. O’Reilly Media, Inc.

Foucault, M. (2016). As palavras e as coisas. Martins Fontes

Foucault, M. (2009). O sujeito e o poder. Forense Universitária.

Kuang, Cligg. & Fabricant Robert (2019) User friendly: how the hidden rules of design are changing the way we live, work and play. MCD. 

Nadler, A., & Mcguigan, L. (2018). An impulse to exploit: The behavioral turn in data-drive marketing. Critical Studies in Media Communication, https://doi.org/10.1080/15295036.2017.1387279

Rouvroy, A., & Berns, T. (2018). Governamentalidade algorítmica e perspectivas de emancipação: o díspar como condição de individuação pela relação? Em Bruno et al. (pp.107-139) São Paulo: Boitempo.

Seaver, N. (2018). Captivating algorithms: Recommender systems as traps. Journal of Material Culture. https://doi.org/10.1177/1359183518820366

Skinner, B. F. (2000). Para além da liberdade e da dignidade. Edições 70, Coleção Ciências do Homem.

Yeung, K. (2017). ‘Hypernudge’: Big Data as a mode of regulation by design. Information, Communication & Society. https://doi.org//10.1080/1369118X.2016.1186713

Zuboff, S. (2020). A era do capitalismo de vigilância: A luta por um futuro humano na nova fronteira de poder. Intrínseca.

References

References
1 Alice é designer de experiência do usuário e mestranda em Comunicação e Cultura na Escola de Comunicação da UFRJ
2 Esta suposição foi endossada de forma contundente pela artista Barbara Kruger ao brincar com a frase célebre de Descartes na série “I shop therefore I am” (Compro logo existo), de 1987.
3 Um dito popular no mercado de tecnologia nos lembra que a única outra indústria a empenhar esse termo para se referir a seus clientes é a de drogas ilícitas, o que é, no mínimo, curioso.
4 Ver: https://80sactual.blogspot.com/2008/09/1984-apple-macintosh.html