Dobras #61 // Três motivos para não “ir atrás disso”: reflexões sobre a nova experiência generativa de busca do Google

22 de maio de 2024

por Alice Lerner* 

Na semana passada, o Google lançou uma atualização no seu mecanismo de busca que, se concretizada como anunciado, mudará completamente a internet como a conhecemos hoje. Os tão familiares links azuis, que ofereciam uma janela para o conhecimento do mundo (e tráfego para os mais variados editores e negócios), estão com os dias contados; em seu lugar, surge uma experiência generativa de busca (Search Generative Experience) que promete mastigar a internet para nos oferecer, já na primeira página, as respostas que até então precisávamos encontrar por conta própria. 

Em entrevista à Wired pouco antes do evento de lançamento, a nova Chefe de Pesquisa do Google, Liz Reid, usou o já conhecido tom determinista para vender os novos avanços da empresa na implementação de IA generativa como inevitáveis: “O tempo das pessoas é valioso, certo? Elas lidam com coisas difíceis. Se você tem a oportunidade de usar tecnologia para ajudar as pessoas a obter respostas às suas perguntas, se é possível reduzir o trabalho, por que não iríamos atrás disso?”

Me deparei com essa citação na newsletter do Casey Newton, um jornalista de tecnologia norte americano que faz uma cobertura excelente das movimentações da indústria, seus dilemas e possíveis impactos. Aos olhos dele, que frequentemente se mostra sensível às pressões comerciais por trás dos lançamentos, a pergunta de Reid parece justa e de difícil equação. Em mim, ao contrário, ela provocou aquele sorriso incrédulo (e um pouco admirado) que escapa quando nos deparamos com a desfaçatez. 

De imediato, me ocorreram três bons motivos pelos quais Reid (e o Google) não deveriam “ir atrás disso”. Claro que a pergunta era retórica e que a ela os pontos negativos não interessam desde que os acionistas estejam contentes; mas a nós, reles mortais que teremos que lidar com o novo paradigma imposto pelo Google, é interessante pensar no que estamos oferecendo em troca dessas respostas mágicas prêt-à-porter

 

1. Curadoria do mundo e perda da realidade compartilhada

O primeiro bom motivo para não oferecer respostas maquínicas personalizadas para cada indivíduo é epistemológico, e será aqui brevemente introduzido por meio de algumas perguntas: Queremos, enquanto sociedade, delegar aos opacos algoritmos de uma empresa privada os contornos do conhecimento possível? A definição do real, a determinação do visível, a avaliação dos valores? Nesta avaliação, há alguma possibilidade de que se privilegie aqueles que aumentam a potência de vida, como sugere Nietzsche, ou ao menos aqueles que consideram o interesse do mundo majoritário[1]A expressão “mundo majoritário” foi proposta no início dos anos 1990 pelo fotojornalista Shahidul Alam em oposição aos termos pejorativos frequentemente empregados como … Continue reading? Quem haverá de nos reparar pelo que poderia ter sido, mas não foi porque era inalcançável à imaginação?

As máquinas conexionistas que hoje protagonizam os LLMs (Large Language Models) operam em uma velocidade sobrehumana, fazendo correlações que ignoram a causalidade e dispensam qualquer programa anterior. Seu conhecimento emerge a partir da relação com o mundo sem a necessidade de hipóteses prévias. Mas Fernanda Bruno e outros pesquisadores deste laboratório do qual também faço parte relembram que o mundo não é legível para as máquinas de antemão; para que seja, é preciso recortá-lo, simplificá-lo, traduzi-lo. O cálculo probabilístico operado pelas Inteligências Artificiais é sempre uma aproximação. A resposta automática do Google, apelidada “AI Overview”, é uma realidade possível dentre tantas outras que foram esquecidas na segunda ou na terceira página de resultados.

Até aqui, temos um problema que poderíamos chamar de curadoria do mundo, no qual uma empresa privada outorga a si não só o direito mas a missão de criar os contornos da realidade. Mas não é muito difícil imaginar um cenário em que o Google, pressionado pela concorrência e submetido à necessidade insaciável de engajamento, faz uma ligeira mudança no modelo de forma que este seja mais responsivo às inclinações pessoais e políticas, aos interesses, desejos e fragilidades psicoemocionais. Parece que a dissonância produzida pelos algoritmos das redes sociais não foi suficiente para provar que precisamos, às custas do fim literal do mundo, preservar alguma realidade compartilhada. 

 

2. O golpe naqueles que dependem da indexação

Caso Reid não seja particularmente sensível à questão epistemológica, o que desconfio ser verdade, temos na desestabilização do ecossistema de indexação um motivo bastante mais palpável para ressalvas quanto à implementação do SGE. Desde sua fundação em 1998, o Google construiu a seu redor uma estrutura sólida na qual empresas e criadores de conteúdo dependem do tráfego advindo dos buscadores, seja ele orgânico ou pago. Embora a relação com esses clientes tenha sido inúmeras vezes abalada pelas mudanças unilaterais nas regras de visibilidade nas SERPs, existia ali uma dinâmica que garantia lucratividade[2]Segundo dados do Statista de 2023, 56% da receita do Google provém de anúncios do buscador. Outros  10% vêm do Youtube Ads e mais 10% de outros anúncios, totalizando mais de 77% da receita total … Continue reading para o Google justamente pela sua capacidade de oferecer sucesso aos demais negócios que dependiam dele. 

Análises preliminares feitas a partir de experimentos com a busca generativa prometem uma disrupção desse ecossistema de redirecionamento de tráfego cuidadosamente alimentado ao longo das últimas quase três décadas. Uma pesquisa recente da Gartner prevê que o tráfego advindo dos buscadores deve cair 25% até 2026 devido aos chatbots de IA e demais Agentes Virtuais; em reportagem do Washington Post, Gerrit De Vynck e Cat Zakrzewski trazem ainda outro número impressionante. Segundo eles, a Raptive, que fornece serviços de mídia digital, audiência e publicidade, estima perdas de cerca de US$ 2 bilhões para os criadores digitais. Nilay Patel, editor chefe da The Verge, resume a situação de forma bastante clara: “O Google é de longe a maior fonte de tráfego na web atualmente, então se ele começar a manter esse tráfego para si mesmo, respondendo a perguntas com IA, isso vai mudar – ou potencialmente até destruir – o ecossistema da Internet como o conhecemos.” Na mesma reportagem, Patel descreve a reação dos criadores de site ao lançamento como “fundamentalmente apocalíptica”.

É evidente que Sundar Pichai, CEO do Google, busca minimizar essas preocupações afirmando que as mudanças serão feitas comedidamente e com cautela, considerando as necessidades dos negócios que dependem da indexação. Mas, ao que tudo indica, a empresa que construiu um império a partir da publicidade está decidida e impor ao jogo novas regras, ainda que para isso precise alavancar outras fontes de receita.

 

3. Imbróglio jurídico 

A terceira e última ressalva que eu faria à Chefe de Pesquisa do Google, se tivesse oportunidade, seria de natureza jurídica. No momento em que escrevo, em maio de 2024, a empresa é alvo de pelo menos dois processos antitruste nos Estados Unidos: no primeiro, de 2020, o Departamento de Justiça e diversos estados argumentam ser ilegal os acordos bilionários feitos pela gigante de tecnologia com navegadores e fabricantes de dispositivos para que seu buscador fosse apresentado como padrão. Um segundo processo, aberto em 2023, foca no suposto abuso de poder para evitar a concorrência no mercado de publicidade direcionada. 

Essa prática da companhia de usar seu monopólio sobre a busca para alavancar seus próprios produtos e serviços já foi alvo de intensos debates. Desde o lançamento do Google Travel, em 2019, agências de viagens como Expedia, Trip Advisor e Booking.com viram seus retornos minguarem, apesar de gastarem bilhões em marketing digital. Google Shopping, Google Books, Google Maps e Google Flights vão na mesma direção, deixando a empresa na posição confortável de recomendar (sob o véu da imparcialidade) seus próprios serviços. É verdade que, salvo algumas ameaças jurídicas pouco conclusivas, essa prática vinha sendo tolerada até aqui. Mas agora, com o SGE, o Google aposta mais alto do que nunca na fantasia onipotente de ser seu próprio controle de qualidade. 

E como se não bastassem essas questões relacionadas à concorrência, a nova atualização na busca insere a empresa na questão jurídica mais badalada do momento: os direitos autorais e intelectuais sobre os dados usados para treinar os modelos de linguagem. No início do ano passado, a Getty Images abriu uma ação contra a Stability AI por conta do uso não autorizado de suas imagens no treinamento do Stable Diffusion; no final do mesmo ano, ninguém menos que o New York Times entrou com um processo contra a Open AI e a Microsoft pela violação dos direitos de seus artigos para treinamento de Inteligência Artificial. Ainda assim, o Google parece acreditar que essa é uma briga que vale comprar. No mínimo, fica claro que a questão legal não parece, a seus olhos, uma ameaça real. 

 

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Você talvez esteja pensando, com razão, que nenhuma dessas preocupações é exatamente nova. O Google já fazia uma curadoria do mundo ao selecionar os links que apareciam com destaque na primeira página e os que ficavam relegados à quase invisibilidade nas subsequentes. A disputa de forças dentro do ecossistema de anúncios também não é novidade, e as batalhas jurídicas muito menos. Os problemas já estavam aí.

Agora, no entanto, temos uma renovação de votos com comunhão total de bens. A SGE reforça o poder de uma única corporação sobre dinâmicas consolidadas na vida de muita gente, sem oferecer em troca qualquer margem de negociação. Sob a retórica clássica da otimização, o Google sequestra as já tão cerceadas possibilidades de navegação pelo desconhecido que os “10 links azuis” nos ofereciam; em seu lugar, surge uma experiência tão circunscrita, tão limitada, que seria injusto chamar de busca.

 

* Alice é designer de experiência do usuário, pesquisadora do MediaLab.UFRJ e mestranda do PPGCOM/UFRJ.

References

References
1 A expressão “mundo majoritário” foi proposta no início dos anos 1990 pelo fotojornalista Shahidul Alam em oposição aos termos pejorativos frequentemente empregados como “terceiro mundo” ou “países em desenvolvimento”. Em uma crítica à retórica linear de progresso imposta pelo Ocidente, esta proposta positiva tira o destaque daquilo que falta e relembra que esta parte em geral negligenciada do mundo representa, na verdade, a maior parte de sua população
2 Segundo dados do Statista de 2023, 56% da receita do Google provém de anúncios do buscador. Outros  10% vêm do Youtube Ads e mais 10% de outros anúncios, totalizando mais de 77% da receita total advindo de propaganda direcionada.